Imagem ilustrativa da imagem Dylan & Thomas
| Foto: Ilustração: Marco Jacobsen


No quarto andar do prédio tem um cachorro chamado Dylan. No oitavo tem outro chamado Thomas. Os donos não sabem, mas se juntassem os dois cachorros teríamos Dylan Thomas, nome de um poeta inglês que é uma das sementes da Geração Beat.

O cão Dylan é um fox paulistinha, magro e nervoso, rebelde como o compositor americano recentemente homenageado com o Nobel de Literatura. Dylan costuma latir para desconhecidos ou quando vê situações de risco, como atravessar a rua com a dona lhe conduzindo entre os carros. Revoltado com a coleira poderia bradar como Bob Dylan na música "Silvio": "Quando eu venho, não me atiram nenhum osso/ Eu sou um velho procurando por uma casa/ Se você não gosta disso, pode me deixar sozinho."

Imagino o cachorro da vizinha cantando a música e penso que ele ficaria feliz sem a coleira, como também recusaria o Nobel por não se adaptar a esse mundo de protocolos e discursos. Mas posso estar enganada.

Assim que Dylan atravessa a rua, vem Thomas, o outro cão que é um Chow Chow de língua azul. Cães de língua azul são absolutamente poéticos por sua conta e risco. Nunca leram Bukowski ou Nuno Júdice - dois autores que celebraram o azul em sua obra - mas trazem na ponta da língua a cor que por si só é poesia.

Ao contrário de Dylan, Thomas é um cão branco, calmo, gordo e peludo, gosto de vê-lo no Calçadão passeando com seu dono, um rapaz que considero paciente. Quando o cachorro estanca em frente ao Banco do Brasil, o dono lhe explica: "Não, Thomas, hoje não vamos sacar dinheiro". E o cão segue seu rumo com a perfeita compreensão de que naquele dia não irá até o caixa eletrônico nem ficará na porta, onde passo por ele com receio de que estranhe minhas pernas com meias pretas e compridas.

Thomas nada tem a ver com o poeta inglês, seu xará, reconhecido por sua verve angustiada e seu alcoolismo. O verdadeiro Dylan Thomas era tão talentoso quanto dramático, sua produção é um grande questionamento pontuado por uma crise existencial sem saída.
"Qual a métrica do dicionário? / A medida do Gênesis?/ O sexo da fugaz centelha?/ A sombra sem forma? / A forma do eco faraônico?/ (A forma da minha idade que censura o sussurro ferido)"

Ou então: "O amor é um reflexo das feições efêmeras/ Que se cala abocanhado pela noite num campo rodeado de pães"

Penso que os cães também têm lá sua angústia, mas se contentam em uivar à noite, embora, cada vez mais urbanos, tenham perdido também essa manifestação de solidão que faz parte do mundo dos homens e dos animais.

Nunca ouvi Dylan nem Thomas uivando. Parecem perfeitamente adaptados à sua condição de cachorros de apartamento, cuja vizinhança decerto não toleraria latidos e lamúrias. Vivemos a sociedade do conformismo. Criamos uma civilização na qual a manifestação da dor é aplacada com medicamentos que tiram de nós essa porção humana de sentir todas as emoções e manifestá-las. Vivemos em condomínios onde moram cães e pessoas que não uivam, onde todos são felizes ou tem um dono que lhes garante o sossego de passear de manhã tão cordiais quanto Dylan e Thomas, vestidos com roupinhas de pet shop e suas coleiras. Esse conforto me faz pensar que há muito tempo os cães deixaram de ser cães, assim como os humanos deixaram de ser humanos, mal expressando sua rebeldia embutidas nas letras e poemas dos últimos inconformados. O mundo nos condomínios nunca será como antes, assim como Dylan e Thomas.

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