O ser humano sempre quer o que parece impossível. Voar sem asas, nadar sem guelras, sondar estrelas. Se não é original, funciona muito bem, criando uma fiel imitação de tudo. Estão aí as asas deltas, os escafandros, as viagens espaciais e, não seria exagero afirmar, que só não conseguimos ainda vencer a morte, mas já levamos a melhor em alguns dribles. Há alguns anos quem sonharia com maquininhas que fazem nosso coração bater mais forte, câmeras que nos ''enxergam'' por dentro, tubos que nos alimentam?
Antes que considerem o raciocínio prepotente, explico que só me ocorre falar destas coisas porque o que nos leva ao quase impossível é o sonho, matéria-prima que bem merece ser olhada de perto, com lupas ajustadinhas, para que se vejam as realizações humanas.
De vez em quando, é bom que se celebre o homem. Este ser capaz de coisas hediondas, mas também de incontáveis maravilhas. E se espichamos o olho para o crime, não custa espichá-lo também para o cuidado, a fé, a vontade de que as coisas melhorem, e assim damos de cara com nossos melhores ''inventos''.
O que nos conduz é o sonho, queremos o que parece estar fora do alcance em todas as situações. Mas que outra espécie faria do amor proibido uma história de ''Romeu e Julieta?'' Da possibilidade de ''ver'' Deus uma religião? Da paisagem vencida o ''paraíso perdido''? Da escassez do vinho as Bodas de Canaã? Do espaço longínquo uma viagem às estrelas? Sonhar e imaginar fazem bem ao espírito, a vida teria menos graça não fossem a beleza do sonho e nossa dose de ilusão. O sonho é bom até mesmo quando não se realiza, porque nos leva para frente, como meninos atrás de uma pipa, que ninguém sabe aonde vai cair.
Tenho uma amiga que me conta a história de um tio, caçador de onças, que passou a vida atrás de um felino selvagem que só ele via nas imediações da fazenda. Ele colecionava armas, media distâncias, fazia tocaias à espera da danada que nem deixava rastros. A ponto de todo mundo pensar que a ''onça do tio'' era ficção, lorota, história de gente caduca. Numa noite de lua, a iluminar porteiras e sugerir desafios, ele matou a pintada e depois do júbilo de trazê-la para que todos vissem, tio Zinho festejou, tirou o couro, empalhou o bicho e depois caiu numa tristeza de dar dó: porque ele havia alvejado o sonho. Dali pra frente, sua vida foi recordar o dia em que matou a onça, mas sem o mesmo entusiasmo de quando preparava o tiro, mirando até as sombras.
Quando tenho um sonho, destes bem complicados, do tipo que requer a ajuda de um amigo na Terra e de um anjo no céu, fico imaginando se não seria melhor errar o alvo e protelar a realização para que me alimente dos devaneios da espera, da esperança e até da angústia de não saber o que me reserva o futuro. Faço planos de mudar de vida. Mas não desejo nada que me amarre à rotina. Antes, sonho em não ter horários, sendo eu mesma a dona do meu nariz, e cumprindo o dia como um ser biológico que acorda com o sol, se deita com a lua, sente prazer nos dias frios e quentes, como um animal feliz. Tenho um sonho de liberdade, mas enquanto as crianças crescem, escrevo histórias sobre o vento, as asas, os carros, e tudo que me dê a sensação de que sou livre porque, afinal, tenho a imaginação, prima-irmã do sonho.
A teimosia em correr atrás do que não se tem, ainda que seja para inventar enredos, dá à vida o tom da beleza e da ilusão, mesmo que para encontrar a felicidade a gente complique as coisas e abuse de fórmulas complexas. Mas a busca é lume, ofício de quem não perde a esperança, apesar de tudo. E me comprazo em saber que esta é uma questão humana, talvez a única espécie que sonha de olhos abertos, trazendo para a realidade a imitação da vida.
A busca da felicidade nos transforma em poetas, pintores, filósofos ou meros sonhadores. E pensar que me enredei em tudo isso porque li o texto do homem que ''recriou'' o azul. Se vocês creem no impossível, anotem a receita. Parece complicada, mas cada um sonha com o que bem entende. Então, vamos lá que hoje é domingo, dia em que se pode sonhar sem as sirenes do cotidiano e sem os laços do compromisso.
''Se quiseres fazer azul, pega um pedaço de céu e mete-o numa panela grande, que possas levar ao lume do horizonte; depois mexe o azul com um resto de vermelho da madrugada, até que ele se desfaça; despeja tudo numa bacia bem limpa, para que nada reste das impurezas da tarde. Por fim, peneira um resto de ouro da areia do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores não se desprendam com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado. Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico. Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que possas distinguir entre uma e outra. Assim o fiz (...) e deixei a receita a quem quiser, algum dia, imitar o céu.'' (Nuno Júdice)

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