Imagem ilustrativa da imagem A arte de fugir para as montanhas
| Foto: Ilustração: Marco Jacobsen



Uma polêmica ganhou fôlego na semana que passou por causa do encerramento antecipado da exposição Queermuseu, no espaço cultural do Santander, em Porto Alegre, depois que pessoas ligadas a movimentos conservadores fizeram pressão e intimidaram o público que ia ver a mostra, alegando que as obras feriam princípios morais. A administração do espaço cultural optou por encerrar a exposição antes do prazo previsto.
O rescaldo deste embate é uma vitrine do pensamento nacional e serve de parâmetro para a compreensão deste momento do Brasil. Não me admiro que tenha sido a arte do estopim de discussões acaloradas, a arte sempre incomoda. Mas em qualquer museu do mundo há obras controversas e ninguém é obrigado a vê-las, museus e galerias são espaços diferentes de meios que levam à sala de nossa casa, como a TV e a internet, temas que pais e mães podem considerar impróprios para seus filhos. Mas o que causou espanto são as inverdades que permearam as discussões. Dentre 270 obras expostas numa mostra que tem como temática o universo LGBT, apenas três foram insistentemente ressaltadas como impróprias ou até mesmo "degeneradas". Uma delas de Lygia Clark (1920 - 1988), expoente da arte contemporânea nacional, pintora e escultura que expôs, por exemplo, na Bienal de Veneza (1954) e integrou a I Exposição de Arte Neoconcreta do Brasil, em 1959.
A obra de Lygia Clark que causou polêmica chama-se "O Eu e o Tu - série Roupa-Corpo-Roupa" (1967), que consiste em dois macacões ligados por um tubo. Cada um dos macacões tem seis zíperes e as pessoas que os vestem podem tocar o corpo uma da outra. Na onda da boataria que envolveu a mostra, pessoas ligadas aos movimentos censores trataram de difundir pelas redes sociais que "crianças teriam vestido os macacões e tocado as genitálias umas das outras." Foi então que Álvaro Clark, filho de Lygia Clark, veio a público para esclarecer que a informação errônea, divulgada pelo vereador pelo PSC do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro – sim, ele é filho "daquele" outro – não tinha nenhum fundamento.
Primeiro: a obra estava exposta num manequim, portanto não disponível para interações; segundo, os macacões são de tamanho grande e não cabem proporcionalmente nas crianças; terceiro, os macacões não tem zíperes na região das genitálias. Ou seja, muita gente caiu na mentira divulgada por pessoas que representam um grande retrocesso porque aliam moralismo a inverdades, mistura inflamável e perigosa.
Mas não apenas setores da direita promovem a censura, a esquerda também protagoniza uma espécie de blitz cultural policiando espetáculos e até livros que estariam incorrendo em expressões politicamente incorretas. Em 2015, a apresentação do espetáculo teatral "A Mulher do Trem", do grupo Os Fofos Encenam, causou grande polêmica depois de uma enxurrada de críticas nas redes sociais sobre o "conteúdo racista" da montagem que contava com o uso de "blackface", técnica de maquiagem usada por atores que aparecem pintados de preto para representarem pessoas negras. Quem conhece o grupo Os Fofos Encenam sabe que a última coisa de que pode ser acusado é de racismo, no seu histórico constam espetáculos sobre a cultura nordestina, especialmente de Pernambuco, nos quais são mostradas as mazelas da relação entre a casa grande e a senzala.
Vivemos tempos tristes em que são evocados preconceitos e tabus como razão de censura e agora, neste episódio da mostra em Porto Alegre, nos deparamos com a acusação gravíssima de "arte degenerada", conceito que remonta ao nazismo, quando Hitler decidiu exterminar artistas por razões políticas. No jogo de espelhos do radicalismo dos grupos que vêm se enfrentando no Brasil, cabe desconfiar das "verdades" disseminadas sobretudo nas redes sociais como forma de promover censura. A arte contemporânea é sim transgressora, mas está longe de poder ser classificada como "degenerada" por questionar valores morais ou mesmo religiosos. Em todo caso, para escapar da esquerda e da direita no Brasil em 2018 o mais sensato é fugir para as montanhas em busca de equilíbrio. Fica a dica.