"It" funciona em vários níveis: como drama juvenil, sutil e evocador, e como filme de aventuras, fraternal e divertido
"It" funciona em vários níveis: como drama juvenil, sutil e evocador, e como filme de aventuras, fraternal e divertido | Foto: Reprodução



Em 2013, apadrinhado por Guillermo Del Toro - vencedor do recém-encerrado Festival de Veneza com a fantasia "A Forma da Água" -, o diretor argentino Andy Muschietti estreou com "Mamá", uma bem modulada história de fantasmas tendo como pano de fundo a maternidade. Não causam maior surpresa, por isso, os bons resultados que colhe agora com "It – A Coisa", barulhenta estreia mundial no momento fazendo o sucesso comercial que a indústria de Hollywood esperava para minimizar os efeitos do furacão que se abateu sobre as bilheterias estadunidenses na última temporada. Na mesma trilha de gênero, Muschietti encarou um desafio: adaptar um dos mais (mal) adaptados escritores, o prolífico, irregular e temperamental Stephen King. E se deu bem: "It – A Coisa", além de muito superior à minissérie de 1990, conseguiu a aprovação oficial do escritor, apesar de algumas liberdades tomadas em relação ao texto.
O que faz de "It" uma das mais interessantes novelas de King não é tanto que fale de um palhaço assassino chamado Pennywise. É também porque explora a consciência das ansiedades universais diante da puberdade. Portanto, muito sábio (e muito esperto) o diretor Muschietti quando não joga todas suas fichas no vilão de cara pintada, mas nos tormentos que, para os garotos protagonistas, representam outros meninos, pais abusivos, hormônios desenfreados e irmãos já falecidos. São esses traumas que preparam o terreno para Pennywise.
Depois de um prólogo de fato arrepiante, o espectador é apresentado aos sete adolescentes, autodenominados "o clube dos perdedores". Uns garotos que experimentam naquele momento o trânsito da infância para a maturidade de forma traumática, acossados por seus próprios terrores deste mundo ao lado da figura sobrenatural de Pennywise. Todos são vítimas do valentão do colégio, que não perde oportunidade de atormentar o gago Bill, o gordinho Benjamin, o negro Mike, o judeu Stan, o hipocondríaco Eddie, o friki Richie e a jovem Beverly, única garota do grupo, rotulada como libertina e sexualmente precoce. Todos encontram numa estreita amizade a força necessária para superar uma dura existência em que a exclusão, o bullying , as mães superprotetoras, os pais abusadores e as carências afetivas estão na ordem do dia.
"It" funciona bem em diferentes níveis. Como drama juvenil de iniciação é sutil e evocador, abordando temas como o primeiro amor ou o despertar do sexo com naturalidade e sem tropeçar em maniqueísmos, tudo auxiliado pelo estupendo trabalho dos jovens atores que agem para que seus personagens ganhem com facilidade a empatia do espectador. Como filme de aventuras é fraternal e divertido. Existe química entre os garotos , e isso se transmite. Valores como camaradagem, inocência ou pureza de sentimentos que relacionamos com a mentalidade adolescente dos anos 1980 (há ressonância de "Goonies" e "Conte Comigo", ambos da década) permanecem intactos no filme, sobrepondo-se ao acúmulo de ingredientes sórdidos e complicados que permeiam a história. E afinal como produto de terror: o filme se confirma como autêntico festival de episódios aterradores. Quando os meninos são levados cada um a enfrentar Pennywise, enquanto encaram seus medos mais profundos, as cenas estão muito bem resolvidas. Como na cena do banho de Beverly inundado de sangue – um pesadelo alegórico da menstruação sobre o medo de se tornar mulher diante do olhar paterno, uma recorrência a "Carrie" de Brian De Palma), ou a magnífica sequência da aparição do palhaço durante a projeção de slides.
Com facilidade Bill Skarsgard nos faz esquecer Tim Curry, o palhaço de 1990. Esta atual encarnação do mal é muito diferente, mais ameaçadora e tenebrosa, e com descomunal presença cênica. O ator sai com méritos deste desafio, mesmo quando abusam do artificialismo dos efeitos digitais para plasmar suas múltiplas transformações. Isto, somado a sustos já esperados e ao aumento de decibéis de música e ruídos (principalmente as passagens da sinistra casa abandonada e no previsível enfrentamento final), faz com que o filme se misture à fórmulas de terror que vem sendo propostas à exaustão. Mas nesse caso são detalhes pequenos que não tiram o brilho desta que é, com certeza, a melhor adaptação de uma obra de King para o cinema desde "A Névoa", (Frank Darabont, 2007).
Mais que o livro, "It", o filme, é uma homenagem à criança que um dia todos fomos.