‘Manchester"...: a narrativa é veiculada através do processo que a logística da morte de um ser querido exige
‘Manchester"...: a narrativa é veiculada através do processo que a logística da morte de um ser querido exige | Foto: Fotos: Divulgação



Nem tudo está perdido. "Manchester by the sea" está em exibição na cidade. Ao que consta, apenas em uma sala e com disponibilidade em diversos horários ao longo do dia. Menos mal. É tempo de ver um dos grandes filmes do ano, infelizmente não "o filme" do Oscar (gostaria muito de estar enganado, mas...). O diretor Kenneth Lonergan compôs um artefato estranho – vamos chamá-lo assim –, muito mais profundo, lucido e relevante do que um simples drama. À medida que o filme avança, o que importa não é tanto a incerta peregrinação de umas vidas condenadas, mas a textura de tudo o que as cerca e lhes dá (ou não) sentido.
Ou se preferirem, "Manchester" se pode ler como uma calculada radiografia, sociológica inclusive, de um estrato da sociedade americana. Mas isso seria limitar muito a provocação de Lonergan. Na verdade, o labirinto de personagens, em sua fuga irracional e em seu vazio, se parece muito à nossa própria existência. É a incapacidade de tentar colocar em ordem o sem sentido de tudo isto à nossa volta, o que leva ao desconcerto de até mesmo uma simples risada. Porque paradoxalmente o filme arrasta toda sua tristeza a um ponto não identificável que se aproxima muito da comédia. O que aguça sua crueldade e estimula sua lucidez.
Há uma ferida tão aberta, profunda e brutal no coração deste filme que nenhuma crítica, nenhum comentário deveria antecipá-la. Toda sua estrutura narrativa exige que esperemos sua descoberta. A sequência central da narrativa contém um flashback que deixa o espectador emocionalmente abalado, assombrado mesmo. Naquele exato momento Lonergan colocou um golpe de mestre de slapstick, uma imprevista cena de comédia pastelão na qual paramédicos manejam desajeitadamente a maca carregando alguém em transe psicológico profundo. Mas o impacto da piada não atenua a gravidade da sequência. Ao contrário, os momentos de humor em"Manchester", que são frequentes, não são protagonizados por gente que, para se esquivar da dor, ri para não chorar. Eles são consequências naturais do trauma, o modo como os personagens preferem lidar com o desconforto do sofrimento que não desaparecerá. Talvez mantenham até certo ponto, provisoriamente sob controle, a dor e a carga. Mas durante o resto dos dias serão feridas abertas.

Filme contém uma overdose de emoções saudáveis nesses tempos cinematográficos de pouco a festejar
Filme contém uma overdose de emoções saudáveis nesses tempos cinematográficos de pouco a festejar



Concretamente, "Manchester..." nos fala muito da necessidade de sermos normais em circunstancias insólitas. Em boa medida, a narrativa é veiculada através do estranho processo administrativo que a logística da morte de um ser querido exige. A morte do irmão do personagem de Casey Affleck e suas consequências burocráticas a interferir na rotina diária da dor. Detectar esta espécie de absurdo com a precisão que está em cena é um dos pontos fortes do filme.
Mas não o único. Ele contém tal abundancia de emoções e ideias que se corre o risco de que isto se torne overdose. Mas são risco e overdose saudáveis, nesses tempos cinematográficos de muito a lamentar, e pouco, muito pouco a festejar. "Manchester..." cresce a cada passo que dá, com uma precisão que assusta ao focar uma sociedade incapaz de colocar em ordem suas contradições (sociais e existenciais). Mas não apenas isso. (Sobre este filme nada que se diga ou se escreva é "apenas" isso.) Aqui é a própria vida que avança até colocar-se ao alcance do olhar do espectador. Um olhar grave, profundo, delicado e sem piedade.
A culpa pesa. O perdão pesa. A vida pesa.