"Corra!": um homem afro-americano que vai passar um fim de semana na casa dos pais de sua namorada branca, onde ocorre uma festa enigmática
"Corra!": um homem afro-americano que vai passar um fim de semana na casa dos pais de sua namorada branca, onde ocorre uma festa enigmática



O diretor Spike Lee deve ter morrido de inveja assistindo "Corra!", uma pequena joia em exibição em Londrina. Tudo o que Lee já disse e mostrou em sua extensa filmografia sobre racismo e suas intercorrências na sociedade contemporânea dos Estados Unidos o estreante Jordan Peele condensou (e adensou) neste filme inteligente sobre as relações inter-raciais. A novidade é a forma utilizada: sólido como narração, impecável nas interpretações, sem nunca subestimar o espectador, "Corra!" oferece suspense e tensão construídos com constância e em nenhum momento como puro golpe de efeito em busca de reação direta, imediata e efêmera.
O resultado é notável em todos os terrenos. O índice de rejeição crítica ao filme é praticamente nenhum, e seu êxito comercial é enorme, já que custou 4,5 milhões de dólares e arrecadou 190 milhões pelo mundo afora. Uma proeza e tanto, a desta história de um homem afro-americano que vai passar um fim de semana na casa dos pais de sua namorada branca. Ele é Chris Washington, jovem fotógrafo negro, a garota é Rose. Ela é persuasiva e mesmo sem muito entusiasmo ele concorda com a visita. Os pais dela são o neurocirurgião Dean e a mãe psiquiatra Missy. Efusivos, liberais, calorosos, de indiscutível correção política. Mas há segredos e mentiras na grande casa acolhedora, especialmente com o casal de empregados afro-americanos, o jardineiro Walter e a doméstica Georgina. Mais complicações: chegam o estranho irmão de Rose e um peculiar grupo de convidados para uma festa bastante enigmática.

A ideia é mostrar uma chamada "classe iluminada" que cria a escravidão contemporânea
A ideia é mostrar uma chamada "classe iluminada" que cria a escravidão contemporânea | Foto: Fotos:Reprodução



Há um tanto de terror, uma estudada expressão do subgênero fantástico, uma dose generosa de suspense e até um toque marcante de ficção científica. Os dois terços iniciais correm por conta das sutilezas, das pequenas observações, da necessária criação de atmosfera de paranoia. E o terço final é para o desenlace explicitamente gráfico, para o qual o diretor Peele também revela habilidades, além de cruzar gêneros com acerto. Há influências bem visíveis, como "Bebê de Rosemary", "Os Invasores de Corpos" e "As Esposas de Stepford". E a referência ao clássico "Adivinhe Quem Vem para Jantar", lançado há exatos 60 anos.
O filme assume uma digna atitude transgressora e uma eficaz denúncia política e social sobre as contradições raciais que nos afligem em tempos de modernidade tecnológica e científica. Aqui é a própria admiração racial de certa "classe iluminada" – aquela que votaria em Obama pela terceira vez, como diz o pai de Rose – capaz de gerar as mais inquietantes formas de escravidão contemporânea. Uma envolvente aparência de terror e medo é o viés que ajuda "Corra!" a por na mesa muitas ideias polêmicas e as mistura com o mais puro horror cinematográfico. Por isso o filme é a um só tempo engenhoso, inspirado e muito atual.