Se os zelosos guardiões de clássicos da ficção científica estiverem muito ansiosos e temerosos sobre o que vai acontecer em 2017 com o projeto "Blade Runner 2049" – a sequela 35 anos depois do icônico original – podem relaxar e se preparar para uma retomada à altura. Isto porque a classe, a inteligência e o estilo visual cool de "A Chegada" (em segunda semana no circuito nacional e desde já uma das melhores estreias de 2016) estarão assegurados pelas mãos do canadense Dennis Villeneuve, um dos diretores mais interessantes atualmente em atividade.
Começo hoje a falar sobre "Arrival", esta pérola da FC, com direito a dobra na coluna da próxima quinta. E também não será o bastante para penetrar mais fundo no filme de Villeneuve – um festival de felizes ideias visuais com ecos de Kubrick, equilibrada combinação dos temas de "Contatos Imediatos do Terceiro Grau"(Spielberg, 1977), "Contato"(Zemeckis, 97), a ambição de "Interestelar"(Nolan, 2014) e um leve toque do messianismo de "A Arvore da Vida" (Malick, 2011), sem mencionar uma Amy Adams que tem perfume de Oscar.
Nunca me preocupei com spoilers. Palavra pedante para estraga-prazeres, ou aquele que revela informações sobre algum filme. Sei que há espectadores que adoram preservar surpresas, do tipo "não quero saber quem matou fulano". Então parem de ler agora, se ainda não viram "A Chegada" (e acreditem, devem assistir mesmo), porque é impossível refletir sobre o filme, aqui em voz alta, sem revelar coisas que procuram explicar certas intercorrências durante a narrativa. Não há assassino a revelar, e nem tragédias a antecipar, porque esta FC não trata de destruir cidades e populações inteiras, ao pior estilo "Independence Day".
Em uma das cenas finais de "A Chegada", um thriller científico-existencial sobre a visita de ETs à Terra com ênfase no foco da linguística, a Dra. Louise Banks (Amy Adams) explica por que se divorciou. "Ele disse que fiz a escolha errada", diz ela à sua filha Hannah. É uma frase fácil de esquecer ou ignorar, especialmente quando a gravidade das revelações a partir da segunda metade do filme se adensa mais e mais. Ao longo de toda a narrativa, Louise não está experimentando suas lembranças do passado, mas vivendo momentos precognitivos de seu próprio futuro. Ela está vivenciando o tempo fora de ordem, porque seus esforços para entender uma língua estrangeira moldaram irreversivelmente seu cérebro. O responsável por este truque narrativo é o escritor (e co-roterista) Ted Chiang, que em 2002 concebeu o conto "História de Sua Vida", narrado na primeira pessoa. Este trabalho, que recomendo com entusiasmo não só pela qualidade da originalidade, mas pelo plus de compreensão mais profunda que ele imprime ao filme, utilizando habilmente diferentes tempos, misturando futuro, passado e presente para tecer o nó complexo e não linear da vida de Louise. Os significados ocultos de Chiang e as coisas que inevitavelmente se perderam na tradução de suas palavras para a tela grande são fundamentais como instrumento auxiliar para que o espectador compreender o que "A Chegada" está dizendo.
O filme é uma versátil experiência de gênero que se comunica em vários níveis.
É sobre linguagem e cooperação, sobre pessoas quebrando barreiras e se projetando numa nova cultura para compreender uma raça estrangeira. E é muito sobre nós mesmos, sobre a nossa condição de eternos aprendizes afetivos. O fascínio desta aventura cinematográfica não se esgota de modo fácil, daí a necessária retomada do tema na próxima semana.