Imagem ilustrativa da imagem Com um braço só
| Foto: Dalva Vidotte/Divulgação



Quebrei o braço, os netos desenharam no gesso e pensei com os botões: eles estão na idade em que nem pensam no tempo, tesouro a ser apenas gasto, enquanto eu cheguei à idade em que, por ter muito mais ontem que amanhã, valorizamos cada momento. Até mesmo o momento de um tombo, a igualar crianças e idosos no conhecimento dos limites: é caindo que aprendemos, né – a criança aprendendo a ousar, o idoso aprendendo a ter cuidado...
Com um braço só, porém vou descobrindo como somos inventivos em criar alternativas. Puxar com os dentes a manga do pullover no outro braço. Abraçar a garrafa térmica, com o braço engessado, para desrosquear a tampa com o braço bom. Enxugar as costas se esfregando contra a toalha na parede. Assim vou me sentindo um tosco Chaplin.
Entretanto achei tempo para limpar meus documentos no computador, rever álbuns de fotos, ligar para amigos, fazer pequenas coisas que só fazendo descubro que faziam grande falta. Estou mesmo começando a achar que somos incompletos até quebrar algum osso.
Chato é aguentar todo mundo perguntando o que foi, quebrou o braço?
- Não, é que vou a baile a fantasia num hospital.
- Quebrei não, ele quebrou sozinho.
- O Donald Trump me apertou a mão.
Claro que não dou nenhuma dessas respostas, só digo que foi um tombo à toa e não quebrou, só trincou (aí as pessoas fazem cara de alívio, o que não diminui o número de dias engessado, serão três semanas). Reclamei ao médico, ele falou que não pode fazer nada:
- Podia ser em menos tempo se os ossos fossem moles, mas desconfio que aí a gente não parava em pé, né?
É, você ainda não perdeu tudo se conserva o bom humor. E, em vez de reclamar, sempre é possível ver o que agradecer. Agradecer porque foi o braço, não o pescoço. Agradecer por ser o braço esquerdo. Então agradecer também por não ser canhoto. E, ainda, agradecer por estar, no momento do tombo, com a coleira da Branquinha na mão direita, ou poderia ter trincado os dois pulsos. E mais agradecer porque, quando gemi de dor no chão, ela me lambeu o rosto com o rabo excepcionalmente abaixado em piedosa solidariedade. Finalmente, agradecer por ter o tombo me dado esta crônica – embora, nada é perfeito, seja nada fácil digitar com um braço só.

Notícia da Chácara

DE ESTIMAÇÃO

Imagem ilustrativa da imagem Com um braço só



Antes eu só passava por elas, então elas se deixavam passar por mim - mas, quando comecei a ver as flores, elas passaram a me florir.
A ciência desmancha-prazeres já revelou que as cores são formas das flores atraírem insetos para se polinizar, é o sexo delas, e é para isso que abrem seus botões receosos neste mundo de amplidões e imprevistos. Mas prefiro entender que elas abrem para mim suas bocas amorosas, a pedir uma cheirada (sem esquecer daquela abelha nariz adentro, por isso só cheiro depois de olhar bem, com o que vejo seus pistilos a palpitar...).
Cheirando ao menos uma flor todo dia, olhando bem de pertinho, dá até para ouvir o que ela tem a dizer.
Um pensamento pode dizer muito. Uma intuição derrota toneladas de razão. Um momento de graça gratuita é a flor do tempo.
Entre injustiças e privilégios, florilégio é adotar um vaso ou um jardim e ter (ou melhor, conviver com) flores de estimação.