Freya Arrabal Schultheiss chegou em Londrina em 1931, com dois anos, na companhia apenas da mãe, que abriu uma padaria e um comércio no centro de Londrina
Freya Arrabal Schultheiss chegou em Londrina em 1931, com dois anos, na companhia apenas da mãe, que abriu uma padaria e um comércio no centro de Londrina | Foto: Fábio Alcover



Em 1929, nasceu Freya Arrabal Schultheiss, a futura mascote do campo de aviação de Londrina e uma das primeiras mulheres a sobrevoar a cidade. A coragem foi herdada da mãe Helene Schultheiss. Ela e a filha vieram sozinhas de São Paulo para Londrina em 1931. O pai Friedrich Schultheiss havia comprado quatro lotes de terras na Avenida Paraná. Apesar da crise econômica após a Primeira Guerra Mundial, ele ainda tinha emprego estável e decidiu continuar em São Paulo. Já Helene preferiu arriscar.

Na nova empreitada, mãe e filha contaram com a ajuda de colonos que já estavam na futura Londrina. Abriram comércio de secos e molhados e uma padaria. Friedrich veio no ano seguinte. "Meu pai se desligou da empresa porque ela disse para ele: 'Aquilo lá tem jeito'", conta Freya. O casal de alemães se instalou em uma casa de madeira na esquina das avenidas Paraná e Duque de Caxias.

Antes de completar 10 anos, convidada pelo engenheiro Ernesto Rosenberger, Freya foi uma das primeiras mulheres a sobrevoar Londrina, e se tornou mascote do campo de aviação
Antes de completar 10 anos, convidada pelo engenheiro Ernesto Rosenberger, Freya foi uma das primeiras mulheres a sobrevoar Londrina, e se tornou mascote do campo de aviação | Foto: Fábio Alcover



A destemida Helene abusou da criatividade. Com lascas de dezenas de caixas de madeira, preencheu as frestas do assoalho da casa e impediu a entrada do vento frio, incômodo a quem só era permitido usar saias e vestidos. "Era uma vida dura. Quando a gente soube que uma mulher andava de calças foi um acontecimento", relata Freya.

Mas foi no balcão da padaria que Helene recebeu o maior desafio até então: cozinhar para pacientes do hospitalzinho da Companhia de Terras Norte do Paraná, criado na década de 1930. A convocação foi feita por um dos médicos. O hospital não tinha cozinha. Helene enviou uma carta a um comerciante de São Paulo que atendeu ao pedido e encaminhou sementes para a alemã. Ela pediu ajuda aos colonos de Heimtal, que plantaram legumes e verduras. E três moças escolhidas pelas famílias ajudaram Helene na preparação dos alimentos em casa.

Freya cresceu em meio à natureza e à poeira da terra vermelha. Ainda menina, viu a cidade ser emancipada em 1934. Nem havia completado 10 anos quando o engenheiro Ernesto Rosenberger a convidou para ser mascote do campo de aviação da cidade. Um alfaiate confeccionou um macacão e Freya embarcou sem medo na pista da Aviação Velha, na Fazenda Palhano, zona sul de Londrina. "O aviador era um moço alto e magro e o avião era aberto. Só tinha o lugar do piloto e o do passageiro. Nós voamos e... Tudo bem. Eu não tive medo nem nada", sorri.

O primeiro voo foi repetido em diversas oportunidades. "Esse negócio de aeroporto foi inaugurado umas três vezes, viu. Doutor Ernesto trabalhou muito mesmo. Ele foi um batalhador para Londrina ter um aeroporto [...] e, no fim das contas, houve um aeroporto para a cidade", comemora.



INVISIBILIDADE
Aos 87 anos, Freya relembra detalhes da história da família e exibe com orgulho fotografias do acervo pessoal. Poucos arquivos, no entanto, relatam a participação das pioneiras na construção da sociedade londrinense. "Há uma invisibilidade delas na documentação. Fotografias, jornais e relatos orais ajudam a rememorar essa participação", constata a historiadora Rosimeire Angelini Castro, professora aposentada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutora em História Social pela PUC-SP. Os registros, na época, elaborados apenas pelos homens, deixavam as mulheres em segundo plano.

Grande parte das pioneiras chegou acompanhada dos maridos, mas deixou para trás o desenvolvimento da área urbana. "Essas mulheres tiveram que improvisar o cotidiano. Tinham muitos afazeres domésticos, uma rotina extenuante. Todos os processos eram manuais, desde o cozimento no fogão a lenha até os cuidados com a família. Elas tiveram papel primordial porque, na verdade, estruturaram a sobrevivência. Enfrentaram doenças como a malária, a falta de recursos em termos de atendimento médico e todas as dificuldades da colonização", destaca Rosimeire.

Na terra desconhecida, a solidariedade entre as vizinhas foi a saída encontrada para amenizar a dura rotina. Muitas trabalharam no plantio e colheita do café. Na vida pública, as mulheres que mais se destacaram foram as irmãs que auxiliaram na implantação do Colégio Mãe de Deus e da Santa Casa de Londrina.

No final da década de 1940 e início da de 1950, as esposas começaram a participar das campanhas políticas. A Casa da Criança, primeira creche do município, foi inaugurada em 1955. Durante pesquisa sobre a evolução das mulheres em Londrina, a historiadora encontrou ainda registros da alemã Herta Kernkamp, que fazia a entrega do leite produzido na colônia alemã de Heimtal, e da candidata a vereadora Nair Paglia Piantini, em 1949. "Ela sofreu muitas ameaças para desistir da candidatura e acabou desistindo mesmo. A campanha política era muito violenta", afirma. Desde a primeira legislatura em 1947, apenas dez mulheres ocuparam cadeiras na Câmara de Vereadores de Londrina.

Um dos poucos registros das pioneiras durante a colonização foi feito pelo engenheiro Gastão de Mesquita Filho, da Cia. Ferroviária São Paulo-Paraná, responsável pela construção da linha entre Ourinhos e Cambará, e organizador da Empresa Elétrica de Londrina.

No livro "Colonização e Desenvolvimento do Norte do Paraná", organizado pela Companhia de Melhoramentos Norte do Paraná, consta depoimento do engenheiro: "Eu era recém-casado e por isso deve ser creditada a minha esposa, a minha querida Isa, que felizmente me acompanha até hoje, a parcela mais significativa do que consegui realizar. Na pessoa dela eu faço questão de prestar uma homenagem a todas as mulheres que ajudaram a colonizar o Norte do Paraná, heroínas anônimas, nem sempre lembradas nas crônicas e nos compêndios de história, mas cuja dedicação ao marido, cuja resignação diante das dificuldades, cuja coragem em enfrentar o desconhecido, merecem tanta admiração quanto os gestos audaciosos de comprar terras, de derrubar florestas, de plantar extensas lavouras".



Filha de um rígido pai libanês, Nágila estudou em colégio interno e visitava a família apenas nas férias
Filha de um rígido pai libanês, Nágila estudou em colégio interno e visitava a família apenas nas férias | Foto: Roberto Custódio




DÉCADA DE 1940 - Nágila Hauly cortou a fita na inauguração da Praça da Bandeira
Em 2010, a população de Londrina era formada por mais de 263 mil mulheres e 243 mil homens, conforme Censo Populacional feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1940, segundo pesquisa da historiadora Rosimeire Angelini Castro, eram 35,5 mil mulheres e 39,7 mil homens.

A primeira criança registrada na cidade foi Nágila Hauly Farht, filha do libanês Salomão Jorge Hauly e de Jamile Ayoub Hauly. O casal deixou a cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, e veio para Londrina com o primeiro filho em 1933. Nascida em setembro do ano seguinte em Nova Dantzig (colônia que deu origem a Cambé), Nágila só foi registrada em janeiro de 1935, após o início das atividades do primeiro cartório, na Rua Pio XII, na área central.


Como primeira criança registrada em Londrina, Nágila participou de várias solenidades. Aos 9 anos, a menina foi convidada pelo capitão Miguel Blasi, então perfeito de Londrina, para inaugurar a Praça Marechal Floriano Peixoto, mais conhecida como Praça da Bandeira, ao lado da Catedral. "Como eu era muito pequena, ele [capitão Miguel Blasi] me ergueu para que eu cortasse a fita. Foi uma festa muito bonita, teve desfile e tudo. [...] Minha mãe mandou fazer um lindo vestido branco cheio de casinhas de abelhas, como falava na época. Foi muito bonito", recorda.



O pai, comerciante, era muito rígido e a mãe se dedicava aos oito filhos. Durante sete anos, a menina estudou em um colégio interno em Botucatu (SP) e retornou a Londrina apenas durante as férias. "Naquele tempo era só trem e demorava muito para chegar. Tinha que fazer baldeação perto de Jacarezinho. Era difícil. Uma vez meu pai chegou em Ourinhos e não aguentava mais a viagem tão longa. Ele pegou um avião pequeno e veio para Londrina", conta.

O pai foi ainda mais rígido em relação ao namoro. "Ele esperou quatro meses para tomar informação da família, depois consentiu que eu namorasse. Só que ele falou para o rapaz: 'Daqui dois meses você vem fazer o noivado e daqui oito meses você vem para casar'", lembra a pioneira, aos 82 anos. "Agora está tudo bem liberal, mas é a evolução. Eu também evoluí e cresci. Hoje acompanho tudo com as minhas netas", diz, sorrindo.

Disciplina oriental que rendeu frutos
Tokiko Okabayashi foi a primeira mulher a receber uma comenda imperial do Japão. A honraria, concedida na década de 1980, causou espanto entre a comunidade nipônica. Tokiko foi homenageada pela dedicação aos imigrantes e pelo trabalho desenvolvido no Brasil. Ela e o marido Taichi Okabayashi deixaram o Japão em busca de novas oportunidades. Os dois se conheceram em São Paulo. O casal veio para Londrina em 1933. Estela Okabayashi, primogênita do casal, foi a primeira filha de japoneses nascida na cidade e fez companhia para a irmã mais velha.

Estela Okabayashi, que atua no Núcleo de Cultura Japonesa da UEL: "A mulher hoje tem que saber aproveitar as oportunidades e ser bastante inteligente. Ela pode tanto quanto o homem"
Estela Okabayashi, que atua no Núcleo de Cultura Japonesa da UEL: "A mulher hoje tem que saber aproveitar as oportunidades e ser bastante inteligente. Ela pode tanto quanto o homem" | Foto: Roberto Custódio



A mãe de Estela dominava a língua portuguesa e trabalhou como intérprete para auxiliar os japoneses em solo brasileiro. "Quando vinham as autoridades, minha mãe ajudava na comunicação. Também quando os doentes chegavam no hospital, ela até dormia por lá para ajudar quem não sabia falar português", conta Estela com orgulho.

A família morou na antiga rua Bahia, hoje rua Professor João Cândido, entre a avenida Paraná e a rua Sergipe. A casa ficava nos fundos do terreno e uma loja foi construída na parte da frente para garantir a renda da família.



Estela lembra que, em sua infância, os jovens costumavam ir até o Bosque Central para se pendurar entre os cipós das árvores frondosas. "Era a diversão dessa época." Os pais de Estela, porém, nunca autorizaram que as irmãs brincassem por lá e elas só observavam a movimentação ao lado da Catedral.

Com o incentivo da família, a pioneira estudou no Colégio Hugo Simas e cursou Pedagogia na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi docente na Faculdade de Filosofia de Londrina, antes mesmo da fundação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Casou-se com quase 30 anos e enfrentou com tranquilidade o preconceito da época.

Professora aposentada pela UEL, a pioneira atua no Núcleo de Estudos da Cultura Japonesa, que fica no campus da universidade, e também foi homenageada com a comenda imperial do Japão pelo trabalho desenvolvido no Brasil para integrar as duas nações. "A mulher hoje encontra muitas possibilidades de crescimento, mas ela tem que saber aproveitar as oportunidades e ser bastante inteligente. Ela pode chegar ao topo, já mostrou e mostra a sua capacidade. Ela pode tanto quanto o homem", frisa Estela. (V. C.)