Imagem ilustrativa da imagem Quando morre um poeta
| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil



Quando 2015 chegou ao fim, todos pensamos que seria difícil viver um ano tão ruim quanto aquele. Infelizmente, 2016 também foi um ano doloroso. Um dia depois do inesquecível adeus aos jovens guerreiros de Chapecó, em que o próprio Deus chorou lágrimas em forma de chuva, o Brasil recebeu a notícia da morte do seu grande poeta. Sim: Ferreira Gullar era o maior poeta vivo do País. Agora ele foi fazer companhia a Drummond, Bandeira, Cabral, Cecília, Jorge de Lima e Bruno Tolentino. Rei morto, eis que temos uma rainha: Adélia Prado, o milagre de Divinópolis.

A exemplo de Manuel Bandeira, o maranhense Gullar sempre cantou a morte, desde a juventude. Durante muito tempo em minha vida, tive como oráculo o seu poema "Morrer no Rio de Janeiro": "Tu de nada suspeitas/ e te preparas para mais um dia no mundo./ Pode ser que de golpe/ ao abrires a janela para a esplêndida manhã/ te invada o temor:/ ‘um dia não mais estarei presente à festa da vida’./ Mas que pode a morte em face do céu azul?/ do escândalo do verão?".

Em 1975, Gullar trancou-se em um apartamento na cidade de Buenos Aires e escreveu aquela que se tornaria sua obra mais famosa: o "Poema Sujo". Longa meditação sobre a memória e as fragilidades da existência, o poema foi escrito numa circunstância pessoal extrema: com a deterioração do clima político na Argentina, Gullar acreditava que poderia ser preso e assassinado a qualquer instante. Sempre me fascinaram as palavras dos homens diante da iminência da morte. E todos os poemas de Gullar parecem ter sido escritos naquele mesmo apartamento de Buenos Aires. "Aqui me tenho/ como não me conheço/ nem me quis/ sem começo/ nem fim/ aqui me tenho/ sem mim/ nada lembro/ nem sei/ à luz presente/ sou apenas um bicho/ transparente".

Nascido em 1930, ano da revolução brasileira, Gullar foi personagem de quase todas as tragédias e comédias do Brasil moderno. Sua vida foi marcada pelos dramas do exílio, da doença e morte dos filhos, das aflições políticas. Militante comunista nos anos 60 e 70, desencantou-se com os antigos ideais e tornou-se, nos últimos anos, um severo crítico do PT e de tudo que Lula e seus companheiros representaram para o Brasil. É admirável ver tamanha lucidez e capacidade de mudança numa idade tão avançada.

Tive a honra de entrevistar Ferreira Gullar em 2010, quando o poeta completou 80 anos. Ele me disse que não se sentia um homem velho. Em nossa conversa, ressaltou que para ele a poesia existe, acima de tudo, para comover. Embora fosse um homem descrente, conseguia dar a cada verso uma poderosa intensidade espiritual. Por isso, rompeu violentamente com a arrogância frígida do movimento concretista. Mas não podemos esquecer, também, a sua importante contribuição para a crítica de artes plásticas no Brasil. Ele era um verdadeiro demolidor da enganação pós-modernista e dos pintores que não sabem pintar.

Quando morre um poeta, nosso dever é buscá-lo nas suas palavras. Vamos ocupar as bibliotecas para reler Ferreira Gullar. Ele estará lá, a nos dizer: "Está fora/ de meu alcance/ o meu fim/ Sei só até/ onde sou/ contemporâneo de mim".


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