Em algum lugar do mundo, há um cavalo ferido. Pela primeira vez em sua vida de cavalo, desde o longínquo dia em que seus olhos de cavalo viram a luz primeira, as suas pernas fraquejam como as de um potro recém-nascido. Por sua cabeça de cavalo passa a estranhíssima vontade de se deitar como se deitam os seres humanos.

Não pode, o pobre cavalo ferido, conceber o que seja "para sempre". Mas, por uma quase miraculosa combinação de seus pensamentos de cavalo, ele intui, ainda que por uma fração de tempo, a ideia de alguma coisa próxima de nunca mais. Quando terminou de formular essa ideia de cavalo, lembrou-se dele, o dono.

Era muito mais que um dono. Era um amigo, era um protetor. Um cavaleiro, um cavalheiro. Tratava-o com toda a delicadeza e respeito possível que pode haver um homem e um cavalo. Em certos instantes, nas galopadas mais extensas, formavam, cavaleiro e cavalo, quase um só ser. No dicionário dos cavalos, porém, não existe a palavra centauro. A memória do dono desaparecido era o mais longe a que as suas cavalgadas mentais poderiam chegar. Talvez, um pouco mais longe: se houvesse um observador onisciente — e há —, naquele preciso momento florescia um sentimento que um escritor humano só poderá definir como saudade de cavalo.

Imagem ilustrativa da imagem O sonho do cavalo ferido
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Triste é o cavalo ferido. Mas não podemos dizer que ele conhece a própria tristeza. Limita-se a senti-la, como sente a dor, sua velha amazona. Conhecer a dor e a tristeza é obra que exige uma presença externa ao seu corpo de cavalo. E essa presença existe.

Quando era um jovem cavalo, com toda sua vida de cavalo pela frente, ele aprendera sozinho a saltar obstáculos. Em cada salto do jovem cavalo, que na época não estava ferido, uma multidão de ancestrais relinchava de alegria, alegria de cavalo. Era uma festa de suor, casco, crina e músculos. Era a felicidade em dose cavalar.

Cavalo ferido, cavalo ferido, hoje você pasta com grande dificuldade. Sua ferida começou na pata, depois de espalhou. Toda euforia dos tempos passados se perdeu. Onde seu cavaleiro? Onde os campos? Onde as colinas? Onde o vento nas crinas? Onde o abrigo de todas as noites? Onde água, feno e calor? Onde os galos da madrugada?

Cavalo ferido, cavalo cansado. Cansado porque a vida lhe parece sem sentido. Agora você está aqui, neste lugar estranho, que outros chamam de cidade. É noite. Seus olhos de cavalo velho pouco enxergam, mesmo com a lua cheia e o céu estrelado. Você procura uma árvore, solitária também, no meio de um pequeno pasto que, se soubesse a linguagem humana, você chamaria de terreno baldio.

Debaixo da árvore, sua estrebaria provisória, você sente um pouco menos de frio e solidão. Roça o focinho no velho tronco, marcado pelos anos. E, de repente, percebe que não sabe mais onde está o centro da dor. O cavalo ferido agora é mais ferida que cavalo. E, no entanto, você está calmo. Invade-lhe uma súbita paz. Paz de cavalo. E dentro dos olhos fechados, lá onde os sonhos de cavalo habitam as lembranças de cavalo, ele aparece outra vez: seu dono, seu amigo, seu protetor. Enfim, cavalo e cavaleiro galopam juntos para sempre — Dom Quixote e Rocinante.