Imagem ilustrativa da imagem O mundo sem perdão de Milan Kundera



Se fosse preciso definir em poucas palavras a realidade descrita no livro "A Brincadeira", de Milan Kundera, a expressão adequada seria: A vida em um universo sem perdão.

O romance de estreia do autor tcheco, publicado em 1967, há exatamente 50 anos, não se limita a denunciar o sistema de opressão dos governos comunistas do Leste Europeu. Trata-se de um mergulho profundo na alma humana, em que os acontecimentos históricos e cotidianos se confrontam com a perspectiva da imortalidade e da transcendência.

Muito mais do que uma simples denúncia do comunismo (o que sem dúvida é), "A Brincadeira" é uma viagem às sombras e luzes da existência humana. Um livro inesquecível.

Seguem algumas passagens em que falam os personagens do romance:

"Um valor degradado e uma ilusão mascarada têm ambos o mesmo corpo deplorável, eles se parecem, e nada mais fácil do que confundi-los."
(Kostka)

"Nestes últimos anos não tenho sido bem-vista (...), parece que sou uma peste, fanática, dogmática, cão de guarda do Partido e tudo o mais, só que o que acontece é que não vou me envergonhar nunca de amar o Partido, de sacrificar a ele todos os meus prazeres. Em primeiro lugar, o que me resta na vida?(...) Só o Partido nunca me decepcionou."
(Helena)

"Do estágio, Marketa me enviou uma carta que era a sua cara: transbordando de aprovação sincera a tudo que estava vivendo, tudo a encantava, inclusive os quinze minutos de ginástica matinal, os relatórios, as reuniões de discussão, as cantigas; escreveu que lá reinava ‘um espírito sadio’; e, por zelo, acrescentou ainda que a revolução no Ocidente não tardaria.
Pensando bem, eu, no fundo, concordava com cada uma das afirmações de Marketa; como ela, acreditava até na revolução na Europa Ocidental; só não aprovava uma coisa: que ela se sentisse feliz e satisfeita enquanto eu sentia a sua falta. Então comprei um cartão-postal e (para feri-la, chocá-la, desnorteá-la) escrevi: O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trótski! Ludvik".
(Ludvik)

"Viver como inimigo daquilo que eu escolhera desde a adolescência, daquilo que realmente contava para mim, parecia-me desesperador. Essa autocrítica, que era ao mesmo tempo um discurso suplicante, eu desenvolvi cem vezes em pensamento, dez vezes pelo menos diante de diversos comitês ou comissões e, por fim, em reunião plenária da nossa faculdade, na qual Zemanek apresentou, sobre a minha pessoa e sobre meu erro, um relatório preliminar (eficaz, brilhante, inesquecível) antes de propor, em nome da organização, minha expulsão do Partido. A discussão aberta que se seguiu à minha intervenção autocrítica se desenvolveu de modo desvantajoso para mim; ninguém veio em meu socorro, tanto que, no fim, todos (uns cem, entre os quais meus professores e colegas mais próximos), é, todos, sem exceção, levantaram a mão para aprovar não apenas minha expulsão do Partido, mas além disso (o que eu não esperava em absoluto), a proibição de continuar os estudos."
(Ludvik)

"Depois disso, ao fazer novos conhecidos, homens e mulheres, amigos novos ou possíveis namoradas, eu os transfiro em pensamento para essa época e para essa sala e me pergunto se eles levantariam a mão; ninguém resiste a esse exame: todos levantam a mão como fizeram naquela época (alguns apressadamente, alguns a contragosto, por convicção ou por temor) meus amigos e conhecidos. Vamos admitir então: é difícil viver com pessoas prontas a nos mandar para o exílio ou para a morte, é difícil fazê-las íntimas, é difícil amá-las."
(Ludvik)

"Comecei a compreender que não havia nenhum meio de retificar a imagem da minha pessoa, desqualificada por um tribunal supremo dos destinos humanos; compreendi que essa imagem (por menos que se parecesse comigo) era infinitamente mais real do que eu mesmo; que ela não era de maneira alguma minha sombra, mas que eu é que era a sombra da minha imagem; que não era possível acusá-la de não se parecer comigo, mas que era eu o culpado dessa falta de semelhança, enfim, era minha cruz, uma cruz que eu não poderia passar a ninguém e que estava condenado a carregar. (...) Eu fora posto para fora do caminho da minha vida."
(Ludvik)

"Meu pai foi preso por espionagem. Você tem ideia do que isso significa? Como é que o Partido pode ter confiança em mim? O Partido tem o dever de não ter confiança em mim!"
(Alexej)

"Ninguém fez tanto por nossa arte popular quanto o governo comunista. Destinou quantias colossais à criação de novos conjuntos. A música popular, violino e címbalo, estava presente todos os dias nos programas de rádio. Os cantos morávios invadiam as universidades, as festas do Primeiro de Maio, as festas dos jovens, os bailes oficiais. O jazz não apenas desapareceu completamente do nosso país, como também passou a simbolizar o capitalismo ocidental e os seus gostos decadentes. (...) O Partido Comunista se empenhava em criar um novo estilo de vida. Apoiava-se na famosa definição que Stálin dera da arte nova: um conteúdo socialista numa forma nacional. Nada senão a arte popular poderia conferir essa forma nacional a nossa música, nossa dança, nossa poesia. (...) Nossa música não era mais uma simples evocação dos tempos antigos. Ela fazia parte da história mais contemporânea. Acompanhava-a. O Partido Comunista nos apoiava. Desse modo, nossas reticências políticas se dissiparam rapidamente. Entrei para o Partido logo no começo de 49. Os colegas do conjunto me acompanharam, um após o outro."
(Jaroslav)

"As pessoas podem falar o que quiserem, a vida é maravilhosa, e eu tenho horror dos profetas da infelicidade; se eu quisesse me queixar, teria mais motivos do que qualquer pessoa, só que me controlo; por que se queixar, quando pode acontecer um dia como o de hoje?"
(Helena)

"Um desgosto me invadiu por esse dia, não apenas por causa de sua inutilidade, mas pela ideia de que mesmo essa inutilidade seria esquecida, apesar da mosca que zumbia na minha têmpora, da poeira dourada que a tília em flor espalhava na toalha e até daquele serviço lento e medíocre, tão revelador do estado de coisas da sociedade em que vivo, que será também esquecida, apesar de todos os seus erros e todas as suas injustiças, que me obcecavam, que me consumiam, que eu me esforçava em corrigir, sancionar, retificar, em vão, já que aquilo tudo que foi feito está feito, irreparavelmente."
(Ludvik)

"Na verdade, por si mesmas as pessoas não sabem perdoar, isso nem mesmo está ao alcance delas. São impotentes para anular um pecado cometido. Isso ultrapassa as forças meramente humanas. Fazer com que um pecado não conte, apagá-lo, diluí-lo no tempo, em outras palavras, transformar alguma coisa em nada, é um ato impenetrável e sobrenatural. Apenas Deus, que escapa às leis deste mundo, porque é livre, porque sabe criar milagres, pode lavar os pecados, pode transformá-los em nada, pode absolvê-los. O homem não tem o poder de absolver o homem, a não ser apoiando-se na absolvição divina."
(Kostka)


Imagem ilustrativa da imagem O mundo sem perdão de Milan Kundera