Imagem ilustrativa da imagem O homem sem coração
| Foto: Bruno Ferraro/ CMD



Eu sou um homem sem coração. Sei que meus 70 críticos, mais aguerridos e militantes do que meus sete leitores, dirão que isso não é novidade alguma; mas o que vou dizer a seguir talvez contrarie as expectativas despertadas por tão escandalosa confissão.

Pois não quis este cronista dizer que o seu coração não existe; ou que não bate; ou que não sangra. Trata-se apenas de uma forma de explicar que meu coração não se encontra em mim mesmo. Ele existe, ele bate, ele sangra — mas está fora dos limites do meu ser. Não habita mais esta estranha nação de um homem só que convencionamos chamar "eu".

Meu coração é da cor do céu de Londrina. Esse céu de um azul mais cintilante que todos os azuis já encontrados lá onde a visão humana e as surpresas da luz de repente se juntam, e não se sabe mais o que é olho e o que é luz. Esse azul que Homero, ainda que tenha sido um poeta cego, pintou nos versos da Ilíada e da Odisseia. Esse azul que Deus escolheu para tecer o manto de Nossa Senhora, mãe que nos ampara no bem e nos protege do mal.

Meu coração é da cor da terra de Londrina. Essa mesma terra que um dia foi alcançada pelos jovens da primeira caravana; que no meio da mata era percorrida pelos índios e pelos caboclos em sinuosas veredas; que recebeu as primeiras sementes de café, esperando cinco anos para que brotassem os primeiros frutos do ouro verde; que sangrou do seio da terra quando o antiquíssimo continente da Pangeia se dividiu para dar origem à América e à África, separadas por um mar-oceano de vinho e de sal; que parece ter sido extraída do sangue de nosso primeiro pai (aquele que pecou) e do sangue nosso único Redentor (aquele que ressuscitou). Oh terra encarnada mais que a própria carne, mais que a própria alma, mais que a própria terra.

O homem é o único animal que sabe olhar para o horizonte e imaginar que algo existe além dele; o único animal que contempla sua própria finitude. E é nisso que eu penso quando olho para a linha do horizonte de Londrina, onde vejo edifícios e árvores, filhos do trabalho e filhos da natureza, erguidos para o alto tais como reverentes mãos em súplica. Londrina, nestes dias de dezembro, é o casamento do céu e da terra: e o meu coração mora exatamente ali onde os noivos se encontram e firmam uma aliança para todo o sempre.

O matrimônio realizou-se numa pequeníssima igreja, um santuário, aonde milhares de pessoas vão para rezar, suplicar, meditar e sobretudo dar graças. É ali que mora meu coração. Silenciosa e quase invisível no meio da floresta de concreto, a capelinha do coração que um dia foi meu agora se abre em sístole e diástole, sístole e diástole, sístole e diástole, numa dialética de alegria e tristeza que me acompanhará até o final dos meus dias, até o final do tempo.

O poeta Maiakóvski dizia que nele a anatomia ficou louca: "Sou todo coração". Meu caso é um pouco diferente: é a loucura que se transformou em coração — e foi morar onde Maria nos acolhe com seu manto e mais uma vez o Menino nasce para salvar o universo.

Não, não eu tenho coração. É o Coração de Jesus, padroeiro de Londrina, que me possui pela eternidade.

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