O homem sem coração
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 18 de dezembro de 2017
por Paulo Briguet
Eu sou um homem sem coração. Sei que meus 70 críticos, mais aguerridos e militantes do que meus sete leitores, dirão que isso não é novidade alguma; mas o que vou dizer a seguir talvez contrarie as expectativas despertadas por tão escandalosa confissão.
Pois não quis este cronista dizer que o seu coração não existe; ou que não bate; ou que não sangra. Trata-se apenas de uma forma de explicar que meu coração não se encontra em mim mesmo. Ele existe, ele bate, ele sangra mas está fora dos limites do meu ser. Não habita mais esta estranha nação de um homem só que convencionamos chamar "eu".
Meu coração é da cor do céu de Londrina. Esse céu de um azul mais cintilante que todos os azuis já encontrados lá onde a visão humana e as surpresas da luz de repente se juntam, e não se sabe mais o que é olho e o que é luz. Esse azul que Homero, ainda que tenha sido um poeta cego, pintou nos versos da Ilíada e da Odisseia. Esse azul que Deus escolheu para tecer o manto de Nossa Senhora, mãe que nos ampara no bem e nos protege do mal.
Meu coração é da cor da terra de Londrina. Essa mesma terra que um dia foi alcançada pelos jovens da primeira caravana; que no meio da mata era percorrida pelos índios e pelos caboclos em sinuosas veredas; que recebeu as primeiras sementes de café, esperando cinco anos para que brotassem os primeiros frutos do ouro verde; que sangrou do seio da terra quando o antiquíssimo continente da Pangeia se dividiu para dar origem à América e à África, separadas por um mar-oceano de vinho e de sal; que parece ter sido extraída do sangue de nosso primeiro pai (aquele que pecou) e do sangue nosso único Redentor (aquele que ressuscitou). Oh terra encarnada mais que a própria carne, mais que a própria alma, mais que a própria terra.
O homem é o único animal que sabe olhar para o horizonte e imaginar que algo existe além dele; o único animal que contempla sua própria finitude. E é nisso que eu penso quando olho para a linha do horizonte de Londrina, onde vejo edifícios e árvores, filhos do trabalho e filhos da natureza, erguidos para o alto tais como reverentes mãos em súplica. Londrina, nestes dias de dezembro, é o casamento do céu e da terra: e o meu coração mora exatamente ali onde os noivos se encontram e firmam uma aliança para todo o sempre.
O matrimônio realizou-se numa pequeníssima igreja, um santuário, aonde milhares de pessoas vão para rezar, suplicar, meditar e sobretudo dar graças. É ali que mora meu coração. Silenciosa e quase invisível no meio da floresta de concreto, a capelinha do coração que um dia foi meu agora se abre em sístole e diástole, sístole e diástole, sístole e diástole, numa dialética de alegria e tristeza que me acompanhará até o final dos meus dias, até o final do tempo.
O poeta Maiakóvski dizia que nele a anatomia ficou louca: "Sou todo coração". Meu caso é um pouco diferente: é a loucura que se transformou em coração e foi morar onde Maria nos acolhe com seu manto e mais uma vez o Menino nasce para salvar o universo.
Não, não eu tenho coração. É o Coração de Jesus, padroeiro de Londrina, que me possui pela eternidade.
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