Há alguns anos, sempre que vem chegando o Natal — e, com ele, a gritaria das chatíssimas Rainhas Brancas e dos Grimchs que odeiam o Natal e fazem questão de deixar isso bem claro para o mundo inteiro nas redes sociais —, eu me lembro de um trecho do livro do escritor cubano Luis Manuel Garcia, "Filho da Revolução".

A obra é um relato autobiográfico sobre a infância do autor na Cuba de Fidel Castro. Filho de pequenos comerciantes — considerados perigosos exploradores capitalistas —, Luis Manuel nasceu em 1959, seis meses depois da tomada do poder por Fidel, Che e seus companheiros revolucionários. Depois de intensos sofrimentos — que incluíram trabalho escravo nos canaviais socialistas —, o pai de Luis Manuel conseguiu deixar o paraíso cubano em 1971.

A passagem de que me lembro todos os Natais refere-se ao dia em que o comandante Fidel Castro anunciou pela TV estatal que o Natal de 1970 seria cancelado. Poucas vezes vi uma descrição tão comovedora da tristeza de uma criança. Leiam e me digam se não é de cortar o coração até do mais empedernido Grimch:

"A safra de dez milhões de toneladas traz muita coisa boa, como o fato de que não precisamos nos esforçar muito na escola porque a metade dos professores está cortando cana no interior do país, e aqueles que não foram estão tão ocupados que só o que conseguem fazer é manter uma certa ordem nas classes que, a cada dia, parecem ficar cada vez mais desordeiras. Mas existem algumas coisas ruins por causa de los dez millones, mesmo que ninguém reclame delas. Como o fato de eles terem cancelado muitos programas de televisão para abrir espaço para as exposições diárias de Fidel, ou o cinema ficar fechado quase todas as noites para que o projecionista possa dar sua contribuição à Revolução indo cortar cana.

E agora, Fidel acaba de anunciar que o Natal foi cancelado.

Eu e meus amigos não conseguimos entender, mas é a pura verdade. Vimos com nossos próprios olhos: Fidel fez um discurso em Havana onde anunciou que, por causa da safra de milhões de toneladas, precisaremos fazer um pequeno sacrifício e adiar as festas de Natal. Este ano não haverá Nochebuena. Fidel alega que Cuba não é mais um país religioso e não faz sentido comemorar uma festa que foi importada da Europa há gerações. Na Europa, faz frio e neva em dezembro, portanto todos têm de ficar dentro de casa, diz Fidel, mas isso não acontece aqui, na Cuba tropical. Aqui, mesmo que seja nosso inverno, dezembro ainda é um mês quente e, além disso, é o pico do tempo de colheita. (...)
Celebraremos o Natal seis meses mais tarde — em julho, no meio do verão. O novo dia de Natal será 26 de julho, informa El Comandante em Jefe, já que, de qualquer maneira, é quando se comemora o início da Revolução; o dia, em 1953, quando Fidel, seu irmão Raul e outros jovens atacaram o quartel de Moncada, em Santiago de Cuba. Este já é o dia mais importante do calendário revolucionário cubano e agora, diz Fidel, será duplamente importante.

(...)

Na televisão, todos parecem achar uma grande ideia o cancelamento do Natal para ajudar a Revolução, mas eu tenho cá minhas dúvidas, porque a Nochebuena sempre foi uma grande festa para nossa família, quando todos os irmãos e irmãs da minha mãe, suas famílias e meus primos vêm a Banes para participar dos festejos e do "lauto" banquete. Este ano não será assim. Nos dias 24 e 25 de dezembro, e até no dia 31 — também não haverá Ano Novo — todos estarão cortando cana com Fidel. Nada de Nochebuena para ninguém e nada de árvores de Natal também porque, segundo Fidel, elas representam um ridículo e antiquado costume europeu que não faz o menor sentido na Cuba revolucionária, onde estamos todos ocupados construindo o socialismo.

(...)

Agora, graças à Revolução, todo dia é um dia bom para os pequenos de Cuba, então, como bons revolucionários que somos, como bons comunistas que queremos ser, teremos de esperar seis meses — até o dia 26 de julho! — para ganhar nossos presentes. (...) Parece um pequeno preço a pagar para defender a Revolução, mas estou arrasado. Suspeito que todos os meus amigos também estejam sentindo a mesma coisa, mas ninguém fala nada.

(...)

Ao voltar para casa, começo a pensar: o que acontecerá se, apesar de todo o trabalho, e apesar do cancelamento da Nochebuena, da abolição das árvores de Natal e do adiamento do Dia de Reis, nós não alcançarmos as dez milhões de toneladas de açúcar? Percebemos instantaneamente que esses são pensamentos muito contrarrevolucionários, mesmo para um filho de gusanos [vermes]. O tipo de ideias que você guarda para você mesmo. Mas não consigo me segurar e me espanto ao constatar que, com exceção do meu pai, ninguém parece nem ao menos considerar essa possibilidade. Ninguém sequer imagina que os diez millones podem não se tornar realidade. Fidel diz que "los diez millones van" e todos concordam, porque é assim que as coisas são em Cuba. Ninguém, nunca, contradiz Fidel.

("Filho da Revolução", de Luis Manuel Garcia. Ed. Landscape. Págs 177-180.)