Imagem ilustrativa da imagem Não é ninguém, é o cronista
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Voltava para casa quando um caminhão passou ao meu lado. Logo atrás vieram dois rapazes, correndo e ao mesmo tempo carregando pesadas sacolas de lixo para em seguida despejá-las no caminhão. Fiquei pensando: quantos quilômetros esses jovens percorrem todos os dias? Quantos quilos de lixo carregam durante sua jornada? Imagine como ficaria a cidade sem o trabalho dos lixeiros! É o bastante para qualificá-los como heróis.

O cotidiano está repleto de heróis desconhecidos que carregam nosso lixo, limpam nossas ruas, tecem nossas roupas, preparam nossas refeições, vigiam nossas casas, cultivam nossos jardins, oram em nossa intenção. Sem o trabalho humano honesto e a união entre as classes sociais, o mundo desmoronaria em questão de segundos. Por isso, um dos meus critérios para determinar o caráter de uma pessoa é observar como ela trata os porteiros, os garçons, os balconistas, os faxineiros, os caixas de supermercado. Sou filho de um homem que tratava os mendigos por "senhor"; nunca me esquecerei deste exemplo.

Henry Miller, meu escritor preferido, teve vários empregos antes de se dedicar à literatura: filho de um alfaiate, o futuro autor de "Trópico de Câncer" foi pugilista, professor de piano, estafeta, vendedor de livros, coveiro... e lixeiro. O romancista tcheco Ivan Klíma, durante o regime comunista, tornou-se lixeiro, de certa forma realizando pelo avesso a profecia de Trotsky, segundo a qual o socialismo transformaria todo varredor de rua em um Goethe. Da experiência de Klíma, nasceu o belíssimo romance "Amor e Lixo". Os comunistas acreditaram mesmo que poderiam quebrar a dignidade de um escritor empurrando-lhe para um trabalho braçal: enganaram-se redondamente.

Uma das mais belas crônicas de Rubem Braga fala sobre um padeiro, do tempo em que os pães eram entregues na porta das casas. A frase desse trabalhador, que não desejava incomodar os moradores com sua presença, foi eternizada pelo grande cronista: "Não é ninguém, é o padeiro". Ora, como assim "não é ninguém"? Esse padeiro simboliza a humildade zelosa e a grandeza de pequenez, sem as quais estaríamos absolutamente perdidos no universo.

Dias atrás, fui surpreendido com a reação das faxineiras de um colégio, que descobriram uma das minhas crônicas sobre mãe e a colaram na parede da salinha do café, para que todos pudessem ler o texto. Os professores intelectualizados e sindicalizados não se interessaram pela crônica, mas as mulheres do povo adoraram!

Devo confessar a vocês, meus sete leitores, e a vocês, minhas leitoras trabalhadoras do colégio: só estou nesta vida porque nada mais deu certo. Aprendi pouquíssimo na faculdade; li muitos livros a menos do que deveria ter lido; e não sei fazer quase nenhum serviço útil, além de lavar a louça. Portanto, desculpem esta intromissão diária. Não é ninguém, é o cronista.