Alguma vez já escrevi que a saudade não é algo que se sente, mas algo que se é. Se minha afirmação continua válida, devo ser um cara muito estranho mesmo. Sinto saudade das coisas mais despropositadas. Acordo no meio da noite morrendo de vontade de trabalhar na minha antiga máquina de escrever dos tempos da República, que não tinha a letra "a". Er bem difícil escrever nel . Outra máquina que aparece nos meus sonhos é a Lettera em que redigi minhas primeiras matérias na Folha, no começo dos anos 90. Nunca joguei xadrez com Estélio Feldman, mas tenho a inexplicável saudade de perder pra ele. Se um dia eu me tornasse super-herói, meu nome seria Homem-Saudade. Ou Homem-S ud de.

Tenho saudade de algumas chuvas, e do cheiro da chuva caindo sobre o asfalto em minha infância paulistana e em minha adolescência araçatubense. Das taturanas do jardim do Externato Casa Pia São Vicente de Paulo, uma escola que já completou 120 anos. Da voz de Madre Lourdes quando fazíamos ordem unida antes de cantar o Hino Nacional. Fazia frio naquelas manhãs, sinto saudade da claraboia que havia na sala da 3ª série B.

Imagem ilustrativa da imagem Aventuras do Homem-Saudade
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Sinto saudade de Tia Ruth lendo gibi do Pato Donald pra mim na sofá do nosso apartamento em Campos Elíseos. De um terço de contas azuis que eu rezava com pressa e amor. Do aroma de café que vinha da torrefadora vizinha ao Colégio Nossa Senhora Aparecida. E do relógio que marcava todas as horas da madrugada na casa de minhas tias em Mirandópolis. Das bananinhas adocicadas, da Coca-Cola meio sem gás, da coleção "Curiosidades" em dez volumes. Ou eram sete?

Tenho saudade de algumas camisas que vesti em São Paulo, há 30 anos, quando morei no Bexiga e, teoricamente, cursava Filosofia na USP, assustadíssimo com o Gênio Enganador de Descartes e com as chatices do Walter Benjamin e da Escola de Frankfurt. O apartamento daquela república de estudantes ficava no 22º andar e eu tinha medo de altura. Ah, como eu gostava de usar aquela camisa quadriculada, azul e verde, que um dia me acompanharia até Londrina na minha primeira visita à cidade. Infelizmente perdi a boina azul que havia comprado quando me rasparam a cabeça no vestibular.

Tenho saudade de tomar café da tarde com minha mãe e minha avó. De acordar com as duas conversando. Dos meus antigos cachorros, inclusive um cachorrinho de plástico que eu levava para todo canto quando morei na Alameda Barão de Limeira. Tenho saudade do bosque de eucaliptos que existia antigamente perto do lugar em que moro hoje. Tenho saudade de Madre Leônia, embora nunca a tenha encontrado pessoalmente.

Dom Albano certa vez me disse que o problema do ser humano é basicamente a saudade do Céu. Aquela mesma saudade que Camões, influenciado pela filosofia grega e mergulhado no cristianismo, cantou em versos: "Não é logo a saudade/ das terras onde nasceu/ a carne, mas é do Céu,/ daquela santa cidade,/ donde esta alma descendeu".

E eu tenho saudades de você, Dom Albano. Como deve ser boa a vida aí no Céu!