Venho de um tempo em que os celulares não existiam. Nem os tablets, nem os notebooks, nem as câmeras digitais, nem os CDs, nem os computadores pessoais. Tudo isso era coisa de ficção científica. Lembro-me da primeira matéria que escrevi na redação da Folha, em 1992: um texto sobre a morte do compositor Herivelto Martins. Redigi a matéria na máquina Remington, depois de relembrar algumas canções do compositor ouvindo-as nos LPs de uma rádio local. Até hoje emociono-me ao recordar o disco girando na vitrola e a voz de Nelson Gonçalves: "Não, eu não posso lembrar que te amei/ Não, eu preciso esquecer que sofri/ Faça de conta que o tempo passou/E que tudo entre nós terminou..."

Ali, bem perto, estavam saudosos colegas jornalistas que hoje escrevem lá no Céu, como Estélio Feldman e Carlos Silva. Editorialista, o homem dos 10 mil textos, Estélio estava sempre com um livro na mão ou jogando xadrez no fumódromo. Carlos era um gozador inveterado: "Paulo Briguet, alguém já lhe disse que o sr. se parece com o Mr. Bean?" Editor de cartas, Carlos me deu preciosas dicas sobre o uso de possessivos e pronomes oblíquos.

Nesta semana estou fazendo uma pequena viagem ao passado, pois perdi meu velho celular. Durante alguns dias, enquanto reúno coragem para comprar um novo, experimento a inesperada sensação de que a vida é possível mesmo sem o aparelhinho. Ele foi embora; deve ter se cansado de mim. Fugiu de casa, como Tolstói fez aos 82 anos de idade, para morrer numa estação ferroviária como uma das personagens de seus livros. Nem deixou nem recado (o celular, não Tolstói).

Imagem ilustrativa da imagem A vida sem celular
| Foto: Shutterstock



Não instalei nele o aplicativo de localização pelo GPS. Sou um cara muito primitivo para essas coisas. E é quase impossível que ele venha a ser encontrado agora. Como descrevê-lo? Ele é preto, retangular, fino. Tem um buraquinho para entrada do carregador e outro para a entrada do fone de ouvido. Nem a marca do coitado eu posso dizer aqui, porque isto é uma crônica, não uma propaganda.

Ah, meu celular. Você deve ter ido para aquele lugar imaginário, o limbo dos objetos que perdemos ao longo da vida. Vai desfrutar eternamente da companhia de guarda-chuvas, livros emprestados e nunca devolvidos, brinquedos abandonados pelas crianças que viraram adolescentes, malas extraviadas, cartas que nunca chegaram ao destino, recados de secretária eletrônica jamais ouvidos, poemas de amor não correspondido, senhas de internet esquecidas, bolas que caíram no quintal do vizinho chato.

Nunca mais acordarei com o seu alarme. Nunca mais terei minhas conversas interrompidas por seu toque irritante. Nunca mais terei notícia dos grupos de WhatsApp em que me adicionaram por engano.

Mas peraí! "Nunca mais" é uma expressão muito forte. Como dizia o James Bond, "Never say never again". É melhor tocar, não um tango argentino, como recomendou o médico de Manuel Bandeira, mas uma canção do Herivelto: "Vida comprida, estrada alongada/ Parto à procura de alguém, à procura de nada/ Vou indo, caminhando sem saber onde chegar/ Quem sabe na volta te encontre no mesmo lugar".

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