Imagem ilustrativa da imagem Pós-verdade
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Não é de hoje que o clima de Fla-Flu dá o tom do debate público. Sobram desinformação e falseamento da realidade. A contenda franca e sensata de ideias vem cedendo espaço ao discurso que diverge por divergir, que quer apenas aparecer, ainda que não carregue consigo nenhuma proposta inteligente sobre a qual se possa refletir. É o tempo da "pós-verdade", um conceito perigoso que prefere a opinião e a emoção ao caráter objetivo dos fatos.

O Fla-Flu no debate público não se constrange por reduzir ao mínimo a complexidade inerente à realidade. Fora dos dogmas particulares, tudo é pecado. A rivalidade entre extremos, apesar de oca, desponta como a grande pauta da sociedade contemporânea.

A disputa pela "pós-verdade" em torno do que está acontecendo na Venezuela é um exemplo da baixíssima intensidade da crítica atual. A banalização do radicalismo político opõe governo e oposição numa guerra que parece não ver nada além do intuito de cada lado convencer por convencer ou iludir por iludir.

Na vizinha nação do Norte, alguns dados escapam aos distúrbios disseminados pela internet e, também, pela imprensa empresarial global. Entre 1990 e 2015, por exemplo, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) na Venezuela aumentou em mais de 20 por cento. Todos os números relativos à expectativa de vida, à escolaridade e à renda per capita aumentaram naquele país. O fenômeno não é um passe de mágica: substantivas parcelas dos louros do petróleo, principal matéria-prima da riqueza venezuelana – que antes servia aos interesses privativos das velhas elites – foram direcionados à população mais pobre nos anos de ascensão e consolidação do chavismo como tendência política no poder.

Apesar dos inúmeros problemas que compõem a gestão do atual presidente Nicolás Maduro, não se pode escamotear o fato de que as oposições ao seu governo têm como objetivo quase exclusivo voltar ao poder. Todo fim parece justificar o meio. Os Estados Unidos da América, aliás, reiteradamente, declaram apoio aos descontentes, tendo decretado que a Venezuela representa uma ameaça a sua segurança interna. O que está em jogo há décadas é o domínio geoestratégico das reservas petrolíferas por uma elite que tem os pés na América do Sul e a cabeça (e as finanças) em Miami.

É preciso, contudo, ponderar sobre os erros de Maduro na condução política do país. Eles não são poucos e precisam orientar o debate sobre o próprio futuro da democracia latino-americana. Mas isso não pode ser realizado à custa de ameaças à legitimidade de seu mandato e à instituição de uma Assembleia Nacional Constituinte. É curioso que a Carta Magna de 1999 (uma das conquistas do capital político de que dispunha Hugo Chávez), violentamente condenada pelas oposições à época, seja agora tão defendida diante da possibilidade de alterações nas regras de escolha dos representantes populares para o parlamento. Indignação seletiva é um ingrediente central da "pós-verdade".

Pela "opinião pública global", Maduro e o chavismo são os responsáveis pela aguda crise que atravessa a Venezuela. É como se o país surgisse no século 21 e não tivesse história – uma longa história, vale frisar, de perpetuação no poder das mesmas elites que o querem de volta a qualquer custo, inclusive o da verdade.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]