O cartunista Henfil (1944-1988) dizia que o humor devia ridicularizar o explorador, não o explorado
O cartunista Henfil (1944-1988) dizia que o humor devia ridicularizar o explorador, não o explorado | Foto: Paulo Leite/Estadão Conteúdo


Dias atrás apareceu no jornal uma crítica descontextualizada ao conceito de hegemonia cultural em Antonio Gramsci, um dos mais importantes pensadores do século 20. Esse tipo de expediente não se dá ao acaso: todo dia um bode expiatório é eleito para justificar a dificuldade que muitos têm de compreender a realidade e nela intervir com verdadeira radicalidade. No caso da citação em pauta, o autor do texto ainda clamava por menos galhardia e mais seriedade. No fim das contas, só o riso é capaz de superar a perplexidade diante de tamanho equívoco.

"O riso", aliás, é título de uma obra de Henri Bergson (1859-1941), na qual o filósofo francês destaca que o humor – que ele aproxima da ideia de comicidade – se dirige sempre à inteligência pura, em seu estado mais humano e aberto à compreensão do mundo. O humor é uma poderosa façanha do ser humano, por cujos meandros torna-se suportável lidar com a mentira e a má-fé. O humor sempre se aproxima da lucidez e com ela passa a se confundir em suas expressões mais significativas.

O humor desloca as pessoas de seu lugar costumeiro, forçando-as a ver as coisas de um modo imprevisto. O riso que dá sequência ao entendimento proposto pela linguagem humorística alivia tensões e permite que visões de mundo adquiram dimensões revitalizadoras. Alguém verdadeiramente dedicado à obra do sardo Antonio Gramsci, por exemplo, diante de uma bobagem a seu respeito, pode rir ou alimentar raiva; procurar uma saída pelo humor ou destilar impropérios infindáveis; transformar o episódio em anedota ou dar-se a replicar a acusação sem sentido por meio de palavras que nada irão resolver, uma vez que equívocos pela má-fé ou pela ignorância sempre serão defendidos como "a verdade de cada um". Num mundo em que tudo é mera questão de opinião, o humor, mais do que necessário, é urgente.

A veia humorística requer, contudo, afastamento do riso que desdenha a dor do outro ou a condição social daqueles que historicamente são subjugados. O riso que repercute preconceitos e nada questiona a estrutura social que se ergue sobre injustiça e desumanidade é fruto do pior dos humores, se é que assim se pode classificar. O saudoso cartunista Henfil (1944-1988), que revolucionou o humor gráfico brasileiro no combate refinado à ditadura civil-militar pós-1964, dizia que o humor precisava ser levado a sério, ou seja, devia ridicularizar o explorador, não o explorado; o poder, não a vítima do desmando; o defensor cego da ordem, não o lutador obstinado da liberdade. O humor tem poder de mobilizar as pessoas, dando-lhes um sentido para a ação que não está contido na "seriedade" dos que manipulam palavras para defender interesses particulares.

Voltando aos ataques superficiais contra a vida e a obra de Antonio Gramsci, que têm se tornado cotidianos em certa tendência conservadora da cultura brasileira, vale destacar o que dizia outro campeão do bom humor nacional, o velho e querido Barão de Itararé, pseudônimo espirituoso do jornalista Aparício Torelly (1895-1971), dono do emblemático semanário "A Manha" – trocadilho sutil ao jornalão "A Manhã", famoso nas décadas iniciais do século passado. Dizia o Barão: "De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo".