Imagem ilustrativa da imagem A esfera da gratuidade
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O aspecto mais desumano da convivência no mundo contemporâneo, sob hegemonia dos valores burgueses, é a hipercompetição generalizada. Há uma disputa por cada objeto, cada posto de trabalho, cada elemento simbólico. Indivíduos desejam sair à frente em todas as dimensões da vida, realçando aparências e relativizando essências. Na fronteira entre o alívio e o desespero, aparece a velha e certeira sentença: "Cada um por si e Deus por todos".

Na correria por se tornar "competitivo", o humano desfaz seus laços de solidariedade e destaca seus aspectos mais fragmentados e divergentes. Adota a ideia de que precisa estar pronto para enfrentar os desafios da existência, a selvageria do mercado, a espada do Estado, a inveja de todos. Predispõe-se, portanto, a viver por si e nada mais. Descola-se do mundo comum, reportando-se a ele somente quando o assunto são seus interesses imediatos e particulares. Numa palavra, torna-se uma máquina.

A linguagem cotidiana também é convocada a dar suporte à reprodução de sujeitos isolados e grupelhos em choque. Verbos como "lucrar", "disputar", "superar" e "vencer", por exemplo, estabelecem parcerias muito duradouras com adjetivos como "rentável", "competitivo", "empreendedor", "eficaz", "campeão" etc. As palavras, mais do que tudo, precisam evidenciar o léxico dos triunfalistas. Nos Estados Unidos da América, onde tudo isso, de certa forma, tem seu palco principal, a vida inteira parece se resumir a ser um "winner" (vencedor) ou um "loser" (perdedor).

A grande tragédia desse estilo de vida é o desaparecimento da esfera da gratuidade. Os momentos dedicados ao riso, ao abraço, aos livros, às canções, aos filmes ou a um bom cochilo na rede perderam sua substância. Ou se transformaram num luxo para quem tem dinheiro (a esfinge que a todos devora), ou passaram a ser vistos como perda de tempo numa realidade tão utilitarista. O sujeito-máquina, nesse sentido, precisa fazer girar a roda da fortuna, cujos benefícios mais significativos, contudo, sempre caem noutras mãos e são depositados noutras contas bancárias. A ilusão de poder vencer numa guerra de todos contra todos é a graxa da engrenagem da máquina, iludida e desumanizada.

Olhar a vida de modo curioso, percebê-la nos detalhes, capturar a totalidade que a compõe, tudo isso se converteu em privilégio. Poucos assim pensam e agem. Costumam ser aqueles que consomem menos medicamentos, lidam de forma mais tranquila com as frustrações, vivem livremente. Ao mesmo tempo, tendem a ser os sujeitos que não se deixam levar pela armadilha liberal segundo a qual não existe almoço grátis – preferem, pois, entender as relações sociais e cobrar que a refeição seja paga por quem pode e deve fazer isso.

A esfera da gratuidade exige que relações menos hostis sejam travadas entre indivíduos e grupos sociais. O direito à educação, à saúde, às manifestações da cultura e ao essencial para a reprodução da vida não pode ser transformado em mercadoria. Do contrário, deixa de ser direito. O prazer pelas coisas mais despretensiosas não pode ser visto como sacrifício inútil ou esbanjamento de energia. A vida, se assim encarada, passa a ser uma mera obrigação ditada de fora para dentro, uma gigantesca máquina de produzir desperdícios.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]