Imagem ilustrativa da imagem O poder da autocrítica
| Foto: Por Marco A. Rossi


No início da década de 1980, o filósofo brasileiro Leandro Konder publicou um artigo que permanece muito influente e provocador. O texto sugere que a dificuldade de fazer autocríticas profundas impede que o conhecimento se torne valioso. Konder, cuja obra é uma pepita para os pensadores e militantes da vida, reflete tanto sobre o conhecimento da realidade objetiva – o mundo em si – quanto acerca do autoconhecimento – a visão que os humanos têm de si mesmos.

O grande problema para a autocrítica é o predomínio, em sociedade, da ideologia "triunfalista", que impõe aos sujeitos o enaltecimento exagerado de seus acertos e a ocultação sistemática de seus fracassos. O símbolo mais expressivo desse fenômeno é a valorização do conhecido "curriculum vitae", uma espécie de resumo de grandes habilidades, invejadas competências e incríveis conquistas. Trata-se de um documento de vaidade dos indivíduos modernos que se recusam a admitir que, no fundo, colecionam mais derrotas do que vitórias em suas trajetórias pessoais.

O "curriculum vitae" expõe uma sociedade hipercompetitiva, na qual seus integrantes precisam provar que merecem um lugar ao sol. Mais do que isso: revela indivíduos que, para obter algum êxito, têm de demonstrar superioridade em relação aos seus semelhantes, considerados concorrentes na corrida por uma fatia da doce e cruel realidade.

O saudoso Leandro Konder afirma que a ideologia que pressupõe a enorme importância do "curriculum vitae" esconde sujeitos imaturos e insensíveis aos temas mais universais da humanidade, como, por exemplo, a liberdade, a justiça e a igualdade. Presos aos seus interesses imediatos e ao pesadelo de um sucesso que dificilmente virá, os seres competitivos se separam do gênero humano e se tornam animais em busca de sobrevivência e algum mísero prazer.

Contra o "curriculum vitae" deve ser elaborado um "curriculum mortis", um tipo de testemunho autocrítico dos sonhos inalcançados e das batalhas perdidas. A aceitação das frustrações e a admissão de que derrotas são inevitáveis – e até desejáveis, em muitos casos – humanizam os indivíduos, colocam-nos cara a cara com um destino que não está fechado, com uma vida que pode e precisa ser diferente.

Há inúmeros provérbios e canções que destacam a necessidade de os seres humanos aprenderem a se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Em nome do que, afinal, torna-se tão forte essa ideologia "triunfalista" que prega a vitória a qualquer preço e o sucesso pessoal como fonte exclusiva da felicidade?

Talvez seja passada a hora de uma ampla e aberta discussão sobre os valores sociais que são transmitidos como decentes às novas gerações. Que educação queremos? Que mídia teremos? Que política podemos? Que mentalidades deixaremos? Quais são, enfim, as prioridades da coexistência?

A sugestão de Leandro Konder, aquela que reúne "curriculum vitae" e "curriculum mortis" como prova de modéstia, inteligência e solidariedade na interpretação que cada um faz de si mesmo e dos outros, é um bom começo de conversa para urgentes novos rumos.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL