Saudade de José Guilherme Merquior
Certa feita, perguntado sobre como se definia, o saudoso liberal brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991) afirmou que era um anarquista cultural. Estava explícita na autocaracterização do autor de "Formalismo e tradição moderna" uma defesa intransigente da liberdade em todas as acepções do termo. Merquior conhecia como poucos os diversos liberalismos, uma corrente do pensamento pluralista e ligada diretamente ao espólio do Iluminismo do século 18.

Um princípio caro à tradição liberal prevê a síntese, no processo de convivência social, entre a liberdade de expressão e a diversidade das manifestações individuais e culturais. Nesse sentido, o liberalismo pressupõe uma grande variedade de crenças e valores. Em sua trajetória de mais de 300 anos, o liberalismo incorporou contribuições críticas e novas dimensões. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, o que há é um social-liberalismo, com fortes ímpetos igualitários e uma decisiva atuação do mundo público – Estado e sociedade civil – em questões ligadas ao bem-estar comum. De muitas maneiras, as relações entre liberalismo e democracia (nem sempre harmoniosas na linha do tempo) protagonizaram boa parte do processo civilizatório ocidental, tanto na defesa de uma sociedade erguida sobre bases legais e constitucionais quanto no caráter incontestável da autonomia dos espíritos humanos.

José Guilherme Merquior, em seu testamento intelectual intitulado "O liberalismo: antigo e moderno", publicado poucos meses após sua morte, associa a liberdade à autonomia, livrando-se, assim, de implicações filosóficas que, via de regra, aproximam a velha liberdade e a ideia metafísica de livre-arbítrio. Para Merquior, a autonomia, como um requisito da liberdade humana, é um tema da vida comunitária e só pode ser pensada no interior da experiência social.

A liberdade, portanto, numa tradição rica e plural como a do liberalismo, possui múltiplas e interdependentes coordenadas. Vincula-se ao pressuposto de que os poderes não podem subjugar a conduta individual e, portanto, devem ser distribuídos de forma equilibrada entre diferentes instituições – é o caso, apenas para lembrar o mais emblemático, da divisão dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), que ocorre para impedir tiranias contra a liberdade de cada um e de todos.

Em termos amplos e constitutivos da sociedade moderna, a liberdade é um título irrevogável do cidadão. A participação na administração pública e nos processos decisórios da comunidade, como assentiu Tocqueville em "A democracia na América", é condição indispensável para a liberdade de consciência e crença, bem como a base para que se multipliquem estilos de vida que digam respeito ao direito de ser e viver como bem se deseja.

Liberais como José Guilherme Merquior, se ainda existem, são raríssimos e não se deixam encontrar facilmente. Em nome do que hoje alguns chamam "liberalismo", impede-se a fala, circunscreve-se a ação e persegue-se a diferença. Nada mais "iliberal". A crise atual, portanto, é de conceitos e posturas, de inteligência e ética. Por isso, Merquior faz tanta falta.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]