Mitos são explicações fabulosas para o desconhecido. Na velha Grécia, por exemplo, não faltavam histórias fantásticas para explicar a origem dos sentimentos, dos fenômenos naturais e, principalmente, de tudo que deixassem perplexos os sujeitos da Antiguidade Clássica. Os mitos, portanto, eram incorpóreos e habitavam a imaginação humana, permitindo certo alívio diante de dúvidas e desafios da existência.
Há muita riqueza nas mitologias. As culturas não têm como abrir mão de fábulas e narrativas extraordinárias. É delas que depende a capacidade dos indivíduos de suportar as pressões materiais da vida cotidiana. Sem mitos, certamente, não haveria sociedades, não existiriam trocas de experiências entre povos distintos e distantes. Para falar com o brilhante sociólogo Norbert Elias, não haveria "processo civilizador".
É na linguagem que residem os mitos, nos instantes em que ela recupera tradições e grandes feitos. Quando parte de uma cultura resolve materializar mitos, dando a eles carne e osso, ela empobrece o imaginário coletivo e, de modo muito perigoso, apaga episódios decisivos da história geral, abdicando de preservar sua memória e de se autorreconhecer no tempo. Em essência, ela se apodera daquilo que a todos pertence, forçando uma visão de mundo muito particular a se espalhar como única opção disponível.
Mitos, ademais, representam sonhos comuns. A unidade de uma cultura tem nos mitos seu aspecto mais universal. Nenhuma parcela da cultura pode se assenhorar de um mito para expressar suas particularidades, sob pena de menosprezar as questões mais gerais da vida de um povo.
Houve uma ditadura civil-militar no Brasil entre 1964 e 1985. Nesse período, além do caráter autoritário do Estado, vicejaram censuras a ideias e manifestações políticas e artísticas, perseguições de cunho ideológico e torturas físicas e psicológicas contra milhares de militantes sociais. Se, no presente, a linguagem de alguns transforma em mito um sujeito que apoiou abertamente os tristes anos de chumbo – não raro, fazendo elogios a torturadores e ironizando torturados -, ela violenta a memória dos desaparecidos, mancha com deboche a bandeira dos democratas, derrama ácido sobre as páginas das grandes lutas por justiça e liberdade no País.
Não há diálogo possível quando os interlocutores não se respeitam mutuamente. O educador Paulo Freire, um dos brasileiros mais respeitados no planeta, dizia que o diálogo é "o encontro amoroso dos homens, que, mediados pelo mundo, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos". Como, então, dialogar com quem nega o outro? Como se fazer humano diante de um sujeito que se permite desumanizar para virar, em vida, o mito de alguns poucos? A democracia é possível nesses termos?
Ao suspender o diálogo, o grito estremece as relações entre sujeitos que, nas suas diferenças, necessitam relembrar a toda hora sua história. A mentalidade fascista não é alternativa numa América Latina que tanto sofre por causa de seus desdobramentos no modo como a vida social está organizada. Latino-americanos são a antítese do fascismo, uma vez que são resultado do cruzamento de muitos povos, de vasta e nobre diversidade cultural. Nosso mito fundador haverá de ser sempre a liberdade – ou a luta incessante por ela.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UELFale com o colunista: [email protected]