Um conto ao pé de uma fogueira, um ponto na frente do fogão à lenha, um comentário sobre a mesa do café, um contraponto com a boca cheia de bolo de fubá. Ouvir uma história balançando na rede da varanda, mirando no horizonte o encontro do céu e da terra.

Entraram no clima?

Hoje o bucolismo tomou conta do Histórias Mínimas e faremos um intercâmbio com a coluna Dedo de Prosa do Folha Rural. Não conhece? Todos os sábados uma crônica nessa temática. Vale a pena!

Vamos aos textos?

Abraços,

Patrícia Maria.

PS: Um agradecimento especial ao ilustrador Fernão Galvão de França pela gentileza de compor, em traços, o tema de hoje.


DUAS MANHÃS



Acordei com o despertador no último volume, uma música que eu já não suporto mais.
Ela acordou com o galo cantando; e o vento lhe veio dar bom-dia: entrou devagarinho pela janela.

Mexi no meu celular por algum tempo, vasculhando todas as redes sociais, lendo textos que eu gostaria de ter feito, coisas que eu gostaria de comprado, países que deveria ter conhecido e fotos de hambúrgueres que eu gostaria de ter comido. Mescladas à fotos de algumas modeletes na academia que me demonstram o porquê de recusar hambúrgueres. Me dizendo mais do que deviam e mais do que me importo.

Ela se dirige, ainda meio cambaleante, à cozinha da fazenda e prepara um café amargo, preferência do irmão mais velho que acordará logo. Com a xícara nas mãos, se recosta na janela e vê o sol surgindo pelas beiradas de seu mundo velho. Os passarinhos desenham formas no céu. Sente-se a única do universo acordada, por enquanto, dona de tudo.

Vou para a cozinha ainda com o celular em mãos, ainda invejando o corpo das modeletes e a sorte de quem consumiu o hambúrguer, aperto dois botões e meu café está pronto. Minha janela tem grades, não dá pra recostar, e sua vista dá para o prédio vizinho e um céu nublado - nublado ou poluído? Vai saber. Ainda sim, sei que o sol surge pelas beiradas, mas não garanto que os passarinhos já estejam no céu – aliás, faz tempo que não vejo passarinhos. Só pombas. Malditas pombas. Sei, aliás, que todos estão acordados, já buzinaram cinquenta vezes lá embaixo. Não sou dona do mundo, pois se fosse, mandaria o mundo fazer silêncio e voltaria a dormir.

AMANDA DAMÁSIO é leitora da Folha de Londrina

Ilustração Fernão Galvão de França
Ilustração Fernão Galvão de França



A CASA DO SITIO



Quando eu era pequeno meu pai comprou um sítio em Cambé. Meu pai comprou o sítio de velhos poloneses, imigrantes da Segunda Guerra Mundial. A casa e tudo mais ali era muito antigo. Na fachada parecia um daqueles casarões europeus, desses que se veem em livros e ficavam no meio daquelas fazendas verdes, mas danificada pelo tempo. O casal vendia a casa porque os filhos, todos crescidos, haviam cada qual tomado seu rumo na vida e eles, com a idade avançada, não podiam mais ficar sozinhos ali. Iam morar com uma das filhas na cidade.

Lembro bem quando chegamos lá pela primeira vez na nossa Kombi bege. Meu pai foi prosear com o caseiro, recém-chegado, que aguardava as instruções dele. Pelo que entendi, até o momento ele apenas abrira as portas e janelas do casarão para arejar o ambiente.

Como todo moleque curioso fui ver o que havia de novo para mim. Fiquei ali à toa um pouco e decidi entrar. Subi os degraus da varanda daquela casa de quase quarenta anos. Eu estava entrando num lugar que representava o passado.

Haviam deixado alguns objetos nas janelas. Enfeites antigos e coisas sem valor. Entrei na sala, o chão de tábuas grossas mostrava-se em bom estado apesar da idade. Havia alguns quadros esquecidos, vasos nos cantos das paredes, cortinas e outros velhos objetos ainda inteiros.

Acredito que não havia muito espaço na casa da cidade, por isso deixaram aquelas coisas para trás. Segui pelo corredor e fui abrindo as portas. Passei pôr uma, era um dos quartos, passei pôr outra era uma despensa - antigamente todas as casa tinham uma para guardar mantimentos - e logo depois, a cozinha. Ali havia um fogão a lenha no canto da parede por onde subia uma chaminé. O chão era de cerâmica já muito gasta. A pia, grande e imaginei que muita comida tivesse sido feita ali.

Voltei pelo mesmo corredor e olhando para o outro lado vi o banheiro. Tinha uma pia de louça e uma banheira. Parecia ter aquecimento central pelo que pude ver. Para a época em que foi construído aquilo era bastante avançado, coisa que eu nem sabia que existia, pois na nossa região não fazia tanto frio assim, mas pelo jeito eles prezavam o conforto.

Abri a torneira da pia para lavar as mãos mas quase desisti. Saiu uma água suja de ferrugem. Depois fiquei sabendo que o encanamento era de ferro. Não havia P.V.C. Para falar a verdade, saiu também, da torneira, uma pequena aranha assustada com o jato de água. Ela sumiu rapidamente pela parede e logo veio uma água limpa. Enxuguei as mãos nas pernas das calças e voltei ao corredor.

Vi a escada que ia para o segundo andar. Tratei de subir, fazia pegadas na poeira. Cheguei ao topo e vi muitos quartos - as portas e janelas abertas deixavam circular o vento e iluminar os cômodos.

Entrei num dos quartos, o que tinha mais luz. Fui chegando perto da janela e logo vi um belo panorama. Encostei os braços no parapeito e senti o vento que vinha distante.

Ao longe balançava uma plantação de milho do sítio vizinho que fazia divisa bem perto. Uma passarinhada passeava sobre algumas árvores e fazia festa quando baixava ao chão.

Em volta da casa só havia um celeiro destelhado e com as tábuas soltas, uma tulha, um forno de fazer pão - este era coberto penso que para que pudessem usá-lo em dia de chuva - e mais umas duas casas pequenas. Uma para guardar as ferramentas e outra para algum depósito ou para defumar carnes dos animais ali abatidos. E, a casa do caseiro.

Ao longe se viam as torres de eletricidade que pareciam pernas embaixo e as partes superiores assemelhavam-se a dois braços erguidos , dando um ar meio assustador. A simetria entre elas era como se houvessem dezenas delas marchando pôr entre as plantações.

O sol da manhã era ainda agradável e quase que fiquei ali mais um pouco apreciando a brisa e o calor preguiçosos. Se não me lembrasse que deveria explorar o resto da casa. Quando saí do quarto encontrei uma pequena escada levando a um sótão. Quer coisa mais curiosa do que o sótão de uma casa antiga?

Subi e logo encontrei uma porta emperrada. Pelo jeito havia muito tempo que não se entrava ali. A limpeza estava precária. Não parecia ter sido cuidado havia tempo. Percebi um monte de papel perto da claraboia. Eram fotos. Mas não eram fotos comuns ,eram fotos da época da Segunda Guerra Mundial. Pessoas em pele e osso. Valetas enormes que aguardavam corpos amontoados.

Eu só tinha visto aquilo numa série de documentários ‘Mundo em Guerra’, na televisão. Mas ali era diferente. Era a realidade nas minhas mãos. As fotos , acredito, teriam sido mandadas por parentes da Europa. Datavam por volta de 1943. Ali, naquelas fotos, seres humanos eram submetidos ao desespero de suas vidas.

Fiquei imaginando com a minha mente de criança por que as pessoas faziam aquilo umas com as outras. Por que havia guerra. E por que ficou tanto tempo acontecendo aquilo. O mundo estava em guerra naquela época mas não eram soldados que estavam mortos ali, havia crianças mulheres e velhos, mas não soldados.

Os meus dez anos de idade ficaram mais sérios depois daquelas reflexões. Descobri que a confiança nas pessoas era algo muito complicado e nossas ações ou omissões podem fazer muita diferença na nossa vida e na vida dos outros.

O mundo não é só um monte de países, mas uma grande variedade de pessoas diferentes umas das outras, com hábitos diversos e que devem ser respeitadas na sua multiplicidade. E, o mais importante é a sua convivência pacífica pois o mundo está cada vez mais diferente e interligado.

Realmente o sótão me deu motivo para pensar. Depois desci e andei pelo sítio. Achei uns pés de goiaba e por lá fiquei um tempão. Mais tarde, enquanto voltávamos para casa, perguntei ao meu pai por que havia guerra no mundo. Ele se espantou um pouco com o assunto fora de contexto e como sempre, nunca me negava respostas, disse-me que eu não deveria me preocupar com aquelas coisas tão cedo, mas a ganância, o desejo de Poder e a falta de amor ao próximo eram as causas principais, na sua opinião.

E, sabe de uma coisa? na simplicidade de sua resposta ele tinha mesmo razão.

DAILTON MARTINS é comerciante em Londrina