Esses dias eu li num livro - "A livraria dos finais felizes" de Katarina Bivald (escritora e funcionária de uma livraria na Suécia) - que Ernest Hemingway, jornalista e escritor norte-americano, certa vez, foi desafiado a fazer um conto com até seis palavras e escreveu o primeiro microconto da história: "For Sale: Baby Shoes, never worn" ("Vende-se sapatos de bebê, nunca usados").

O que que eu quero contando essa história? Nada em particular. Mas com essa abaixo, eu quero.

O GRANDE DESASTRE AÉREO DE ONTEM

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

JORGE DE LIMA (1893 - 1953) foi político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro.

Esse poema surrealista de Jorge de Lima é o mote que permeia os textos dessa semana. Além de que, se por uma acaso o leitor notar, um dos propósitos de escrever as funções sociais dos autores é só um pretexto para dizer que todo mundo tem uma história para contar. Escreva e envie para a [email protected].

Abraços,

Patrícia Maria.


MICROCONTOS



ILUSÃO DE ÓPTICA Por anos a fio, divertira-se a desdenhar dos homens. A princípio sentia-se protegida com esta atitude, depois a solidão começou a incomodar. Com o tempo, quis deixar este modo de vida e percebeu que se tornara invisível.

DESPEDIDA Nos labirintos da memória, criou uma realidade virtual e perdeu-se nos pensamentos.

HACKER Passa para a fase seguinte quem descobrir se Deus criou o homem ou se o Homem criou deus. O próximo desafio é revelar quem inventou este jogo.

SONIA REGINA ROCHA RODRIGUES é médica, escritora e leitora da Folha de Londrina em Santos (SP)


Sonia nos enviou seus microcontos e me fez lembrar da história do Hemingway lá do topo. E, apesar de curtos, seus microcontos são bem intensos. Notaram?.


O LEITOR DE PENSAMENTOS

Só bem depois quando estava quase adulto, que o Marinho, como era chamado ali no seu bairro na periferia da grande cidade, foi tomando conhecimento que era diferente das demais pessoas.

Até então, pensava que todos eram como ele, viam, sentiam, cheiravam e ouviam os pensamentos das pessoas. Mas, foi só com o amadurecimento que foi percebendo que os outros, quando os indagava dos porquês deles estarem pensando de determinada forma, se assustavam e muitos até corriam dele. Achavam que ele tinha alguma coisa haver com espíritos.

A princípio isso lhe causou grande espanto. Mas depois, vasculhando as lembranças, entendeu uma série de coisas que haviam acontecido e que ele não conseguiu explicar na época.

Lembrou que uma vez, sua mãe no dia de Páscoa, chegou até ele e seus dois outros irmãos, dizendo que poderiam ir procurar os ovos de chocolate que estavam escondidos. Seus irmãos saíram em disparada, olhando para todos os cantos, embaixo de móveis, dentro de guarda roupas etc. Ele não compreendeu a atitude dos irmãos, pois tão logo a mãe lhes dissera aquilo, também disse que eles teriam muito trabalho para achá-los disfarçados dentro do cesto de roupas lavadas que a ela não podia esquecer de passar depois da brincadeira. Se ela falou que os escondera no cesto, por que demoravam tanto para ir direto lá buscá-los?

Mas, como nascera assim, isso, para ele, era normal. Só ficava mesmo confuso, com fatos, por exemplo: Porque a professora, em sala de aula dava as respostas das provas e os seus colegas insistiam em não marcá-las. E, se tocava no assunto depois com eles, logo o olhavam dum jeito que o desestimulava a prosseguir a conversa.

Um dia, caminhando cabisbaixo, introvertido em seus pensamentos, pareceu ouvir alguém lhe dizendo: Nossa que moço bonito, parece estar triste. E, inocentemente, levantando a cabeça, ele respondeu à moça que passava que não estava triste, que estava... Mas ela o interrompeu dizendo: "Como sabe que pensei isso?"

Confuso, tentou explicar, mas outra vez foi interrompido por ela que disse: "Você é igual a mim, somos diferentes dos demais, tanto que faz quase três minutos que estamos conversando e nem eu nem você ainda abrimos a boca" e riu.

Do namoro que se seguiu, foi uma felicidade só. Não havia, como é obvio, nada que um pudesse esconder do outro. Mas compreendiam o peso e a enorme responsabilidade de terem nascido assim, conhecer os pensamentos mais íntimos e inconfessos das pessoas, no dia a dia, era complicado demais. Nunca a pessoa era uma só. Era a que aparentava ser e outra que de fato existia.

Por isso sempre que podiam, nas reuniões com amigos, uma das frases preferidas pelo casal era: "Nunca queiram saber o que vai na cabeça das pessoas".


JOSÉ ROBERTO BRUNASSI é advogado, escritor e leitor da Folha de Londrina.

José eu tinha uma noção bem nítida sobre como deve ser perturbador saber o que pensam as pessoas. Agora, depois do seu conto fiquei aterrorizada. Sem mais.
E, amanhã temos contos de terror, vou apagar as luzes e acender uma lanterna para criar um clima de tensão. Até. *** E, arrisquem-se! Escrever e coçar é só começar!! Abraços e espero o e-mail de vocês: [email protected]