O fluxo de consciência é uma técnica literária da qual muito gosto. Sinto que o plano se abre quando entramos no caos do pensamento da personagem central. Era uma cena, é um universo. Às vezes é um pouco confuso, tem que ler mais uma vez, mas quando se encaixa... te afoga nas profundezas de sensações e abstrações. De certo modo, ambos os autores de hoje empregam esse fluxo em sua narrativa.

Vamos conferir?

Patricia Maria

****



VERÔNICA E VALENTINA

Só me dei conta de quem aqueles olhos lembravam quando o policial me abordou.

- Verônica… - Sussurrei pra mim mesmo enquanto o policial, com a doce truculência habitual, me revistava em meio a insultos e ameaças. Não fazia ideia do que acontecia, tive a mochila revirada e jogada no chão junto meu caderno de desenhos. Fui conduzido, num misto de medo e surpresa, à delegacia mais próxima mas, a despeito de tudo isso, estava curiosamente calmo.

Os olhos de Verônica não me saiam da cabeça.

Tudo aconteceu tão rápido que sequer tive tempo de me explicar ou falar qualquer coisa. De um jeito súbito, como se tivesse acordado de um sonho, me vi sentado de frente a um sujeito levemente acima do peso, que afrouxava uma gravata e rabiscava algo num caderno de notas. Estava na delegacia.

- O Sr. Silas aqui nos disse que você se recusou a falar sobre o ocorrido, isso procede, senhor…?

- Maurício. - disse depois de uns instantes tentando me situar. - Maurício Oliveira.

- Pois bem, senhor Maurício Oliveira de Souza. - disse o delegado lendo meu RG entregue pelo "gentil" policial que me abordara (Silas, presumi). - Uma senhora e uma jovem fizeram uma acusação deveras grave sobre sua pessoa e estamos aqui para alguns… esclarecimentos, tudo bem?

- Tudo bem, mas eu realmente não faço a mínima ideia do que tá acontecendo.

- Segundo a moça você a seguiu por toda a extensão do Parque Municipal e, em dado ponto, se escondeu e a ficou vigiando com o intuito de sabe-se lá o quê. Assustada a jovem chamou a mãe que acionou uma viatura e cá estamos…

Cruzou os dedos e apoiou o queixo sobre eles, esperando uma explicação de minha parte. Eu continuava calmo, como se toda a confusão não estivesse acontecendo comigo.

- Bem, eu realmente não faço ideia de nada disso. Andei pelo parque, sim, por um bom tempo. Sou desenhista e procurava inspiração, sentei em alguns lugares, fiz esboços (estão no meu caderno, pode olhar), observei algumas pessoas sim, faço muito isso, mas só pra desenhar, nada de mais… - expliquei. - Preciso ligar pra alguém? Um advogado? Vou ser preso ou algo assim?

- Calma, nós estamos apenas…- Mas não chegou a terminar, pois foi interrompido pelo nosso amigo Silas que lhe cochichava algo ao ouvido.

- Senhor Maurício. - Me disse com um sorriso enigmático. - O senhor está liberado, por ora, mas vamos precisar do seu contato e algumas informações, caso haja alguma eventualidade. Obrigado. - E me indicou a saída.

Preenchi um formulário, informei alguns dados e, na esperança de que as surpresas acabassem por aí, respirei fundo, ajeitei a mochila e saí da delegacia. O sol do fim de tarde me pegou de frente e fiquei cego momentaneamente. Quando ajustei a vista, vi a garota que achei ser Verônica, que tinha os olhos de Verônica, acompanhada de uma mulher mais velha. Ambas caminharam na minha direção e, a cada passo, meu coração errava uma batida. Pararam a dois passos: a garota na frente, a mulher atrás.

- Oi pai… acho que você não me conhece ainda, me chamo Valentina. - E sorriu.

MAGNO BRITO é escritor em Belém do Pará.

****


VAGAS LUZES



Não foi o vaga-lume que a acordou, certamente.

O teto era muito alto e todo o quarto grande demais para ecoar aquele falsete de luz. Mas foi justamente sua claridade esverdeada a primeira coisa que ela viu quando abriu os olhos no escuro do meio da madrugada. O silêncio da noite é, na verdade, uma incessante harmônica de cricrilos, pios, zumbidos, grasnos, coachos e todos os outros indefiníveis sons que as criaturas dos quintais fazem. No entanto, ali, naquele momento em que ela abriu os olhos como se fosse um robô de pálpebras retráteis, o silêncio era aquático, daqueles que a gente sente debaixo d´agua. Era apenas uma sensação. Quando ele se apagou, ela ainda estava entre os dois mundos. Colocou palavras sussurradas involuntariamente no ar: "Ele deixou de existir. Somos o que brilhamos. A maioria das pessoas é o escuro do quarto".

Mas ele não estava extinto. Voltou a piscar muito próximo ao rosto dela. Voava tão suave que ela não percebeu quando se aproximou. Acordou um pouco mais e piscou os olhos. "Como entrou aqui?" – ela perguntou com voz sonolenta. E ela mesmo respondeu: "só pode ter sido por baixo da porta. Não era para você voar ao invés de ficar passando por baixo das portas?". Olhou pela janela e lá no quintal, em meio às árvores e os arbustos de amora, cintilava o amor dos vaga-lumes. Dezenas deles piscavam assanhados na única época fértil que possuíam no ano. Sua alma se encheu de algo parecido com alegria, ou satisfação momentânea. Foi ao banheiro, sentou-se na privada e espichou o pescoço para se olhar no espelho. "Se eu fosse uma vaga-lume nunca conseguiria alguém com coragem de acasalar comigo essa noite". A gente vale o que a gente brilha.

No sítio da sua vó, na serra, os vaga-lumes abundavam naquela época do ano. Foi ali que ela descobriu que existem muitos insetos que vagalumeiam. De besouros parecidos com baratas verdes de dez centímetros de comprimento aos louva-deus, muitos insetos possuíam a característica de simular a luz com aquele brilho fantasmagórico. Há de se pensar, assim sentada no vaso sanitário, que muitos óvnis podem não ter sido identificados justamente por serem confundidos com vaga-lumes.

Porém, dentre tantos pequenos seres noturnos brilhantes, existia o vaga-lume clássico. Esse que ela deixara voando no quarto. Eles tinham no máximo dois centímetros de comprimento e eram pouco mais que uma joaninha verde com a barriga fosforescente esbranquiçada à luz. Ela sabia bem. Era uma conhecedora de criaturas que brilhavam. Caçava-as nos bosques ao lado da grande e antiga casa de madeira dos avós no sítio. Guardava-as num vidro que colocava à cabeceira durante a noite. Dezenas delas. Então ela possuía um incrível abajur verde fosforescente. O brilho era tão intenso que projetava a sombra do seu rosto na cabeceira da cama feita de madeira maciça negra. Mas ela os soltava antes de dormir. Não conseguia, na verdade, dormir com eles ali presos apenas para o seu deleite. Capturava-os com apreensão e ansiedade e os soltava apaixonada e leve. Como alguém poderia lembrar de tudo isso durante um xixi? Antes de sair do banheiro, já pensando em colocar o vaga-lume para fora, ainda olhou no espelho e, pensando melhor, apostou que teriam muitos vaga-lumes que iriam querê-la, mesmo assim descabelada e com olhos inchados de sono. Iam piscar sedutoramente para ela. E ela piscou para o espelho.
Com a luz acesa não encontrou o inseto no quarto. Apagou-a e nada. Decidiu deitar e esperar. Quando estava quase dormindo novamente, na parede, ele piscou. Lentamente. Só então ela descobriu que vaga-lumes não piscam, eles pulsam de amor. E ele pulsava, docemente, na parede. Talvez aquele dia fosse o mais importante da sua pequena vida. Ou o ápice da sua forma física. Ou a festa mais doida que um cara tão jovem jamais tivesse ido. Ele precisava sair. Ela resmungou pela demora dele em se manifestar, levantou, pegou uma fatura de cartão de crédito e fez com que ele subisse no papel. Era uma criaturinha muito pequenina, muito frágil. Levou-o ao quintal, bem onde a vagalumaida pulsava de amor alegremente.

Uma pequena constelação a contornou, sumindo e reaparecendo, totalmente diferente, segundos depois. Por um instante viu ali toda a história da criação das galáxias contada de uma só vez e só para ela. Um silencioso registro condensando de bilhões de anos em alguns segundos. No cheiro da noite, da terra trabalhando. Sentiu vontade de dizer algo lindo e grandioso, mas não achou palavras, estava realmente com sono. Apenas se despediu do amigo que voou faceiro para dentro da noite em que estava em jogo a eternização da espécie. "Estrele-se. Esta noite você será o que conseguir brilhar".




EDEMAR GREGÓRIO é escritor curitibano radicado em Londrina esse conto é parte do livro "Amores perfurocortantes" - ainda não publicado.


Por hoje é só pessoal!! Continuem a escrever para o [email protected] e envie o seu conto, crônica, poesia, livro, curto, longo, micro, quilométrico! Beijos