Todos os dias, salvo algumas raras exceções, recebemos de leitores uma crônica, um conto, uma poesia, um sentimento. E, digo desde já. É uma honra! Inspirados na quantidade de material literário nos nossos arquivos, tivemos a ideia da coluna Histórias Mínimas, que visa incentivar a escrita criativa dos nossos leitores e essa troca de pensamentos e literatura.

Nas crônicas e contos que já li e que em breve serão publicados, pude notar uma diversidade de temas. Há os que entram em um fluxo de pensamento sobre o cotidiano. E, os que fazem às vezes de nosso cicerone pelo universo mítico que criaram. Uns falam sobre a ausência, as perdas; sobre o amor, a vida; tristezas e alegrias; realidade e fantasias. Até o sobrenatural, suspense, terror e medo são temas. Mas, para o alívio da tensão, alguns textos me fizeram sorrir e até gargalhar com alguns de seus romances ou suas comédias.

Hoje, para começar, vou publicar duas crônicas e um conto.

E, já peço desculpas ao leitor, que como eu não consigo ler algo sem ao menos comentá-lo, com a permissão de vocês, vou usá-los de meus interlocutores e fazer suaves interpelações. Coisa breve. Prometo.

Por fim, escrevam e enviem seus textos ou dúvidas para [email protected]

Os textos devem ter no máximo 4.500 caracteres, no mínimo 1.500 caracteres e ser encaminhados com nome completo, cidade e telefone de contato.


Um grande abraço a todos.

Patrícia Maria


A FAMA DO PERIGOSO



A pequena cidade do interior era um lugar tranquilo até à chegada de Malaquias. O sujeito chegou de mansinho, como quem não quer nada, mas queria tudo.

A fama de perigoso chegou até mesmo antes dele:- 'Malaquias, "O Carniceiro" vai se mudar para cá, veio fugido' -'Dizem que já mandou muita gente para debaixo da terra' e para completar: -" Ele vem com um bando de gente perigosa, é um veneno este tal de Malaquias", ouvia-se nos murmúrios.

Era o que faltava para que a pequena cidade ficasse em estado de pânico. Assim como foi descrito o bando de Malaquias, "O Carniceiro", chegou e assim como haviam falado, era realmente como o sujeito se apresentava. Um homem pequeno com a cara de poucos amigos, porém faltava um detalhe, o Carniceiro ostentava uma cicatriz no lado esquerdo do rosto. Certa vez alguém, sabe-se lá quem, descobriu, via boato, que aquilo foi um trato que ele havia feito com o coisa ruim para que tivesse sete vidas, e que ficava invisível diante dos inimigos.

Como se chegou a esta revelação era outro mistério, todavia ninguém contestou. Na verdade, ninguém queria se por frente a Malaquias e perguntar se procedia. Então assim ficou. Todos os dias o bando logo cedinho saia com as armas enroladas em sacos, montados em seus cavalos, só regressavam à noitinha.

Quando passava o bando de Malaquias, as pessoas, disfarçadamente, se benziam, pois falava-se também a boca pequena, que Malaquias podia ler pensamentos das pessoas.

Passaram se muitos anos até que o Carniceiro morreu de morte natural. Poucas pessoas foram ao seu velório porque se comentava na cidade que seus inimigos viriam para acabar de matá-lo.

No dia, durante o velório uma velha surda perguntou para um de seus capangas:- 'O homem morreu de quê?' O capanga respondeu:- 'Ele morreu, morrido, não precisou de motivo não minha senhora'.

A velha surda balançou a cabeça e nada ouviu. Ao redor, porém, os corajosos que ali estavam, ficaram sabendo que Malaquias, "O Carniceiro" era perfurador de poços, e verdade que havia mandado muitas pessoas para debaixo da terra, mas por conta da função. A fama de carniceiro é que Malaquias, dizia-se, não era chegado num banho.

MORAL DA HISTÓRIA: "A fama de valente fez do covarde um homem perigoso."

MANOEL JOSÉ RODRIGUES é leitor da Folha de Londrina e mora em Alvorada do Sul.


Mesmo que a gente acredite nesse ofício de perfurar poços, Manoel, quem agora pode nos assegurar? Deixa assim. Vai que Malaquias se afronta com o boato todo e volta para o puxar o pé da gente. Eu, hein!



O VENDEDOR DE LARANJAS



Temos pessoas em nossas vidas que não sabem que fazem parte dela. Nós as vemos todos os dias, mas a rotina repetitiva impede que as enxerguemos verdadeiramente.

Indo e vindo do trabalho eu vejo, se é que vejo mesmo, o vendedor de laranjas, homem humilde, frágil, uns poucos cabelos brancos fazem contraste com a pele queimada pelo sol. Nunca em todos esses anos eu vi alguém comprar alguma laranja. O semáforo é demasiado rápido para seus reflexos enferrujados pelo tempo. Mas mesmo com as condições pouco favoráveis para sua idade avançada ele sempre está lá. Embaixo de chuva e de sol, no frio e no calor, feliz em sua simplicidade.

Certo dia, porém, algo inesperado quebrou minha rotina e minha cabeça pareceu despertar de um grande transe. Ele não estava lá. Enquanto a luz do semáforo reluzia vermelha eu pensei no porquê. 'Talvez ele tivesse se dado um dia de folga, justo!'.

No dia seguinte, ele não apareceu também. 'Podia, quem sabe estar de visita na casa de algum parente distante' me consolei. Mas, não apareceu nem noutro dia, nem no próximo. Nunca mais. Espero apenas que ele tenha encontrado um lugar na sombra de alguma árvore para vender suas laranjas, ainda mais feliz em sua simplicidade.

JÚLIO MICHELLI é leitor da Folha de Londrina


Posso dizer para você Júlio que nossa aposta é que o vendedor de laranjas ganhou na Mega Sena da Virada. E, em breve publicaremos sua crônica de férias, enviada direto das Bahamas. Estamos torcendo!

CAFÉOMANCIA



A tarde começava e o dia parecia ficar mais quente. Dona Celeste respirava cansada. Acabara de bater e cilindrar uma massa tão bonita que dava a certeza de render uns três ou quatro pães grandes. Ela tinha olho pra coisa, viveu fazendo isso. Um pão daria para a filha mais nova, solteira, morando sozinha no centro da cidade. Dois pães daria à filha mais velha, casada e com seus dois meninos pequenos, com quem a avó ficava depois que saíam da escola. O pão que restasse ficaria com ela, o menorzinho talvez.

Sempre fizera pão pensando nos filhos, não no sentido de fazer pães para eles, e sim pensava neles enquanto amassava e cilindrava, enquanto assavam. Pensava nos filhos, no amor pelos filhos e netos, essa descendência cujo sangue, o seu mesmo sangue, vinha de uma velha vidente da Bulgária que se dizia etrusca. Tão etrusca quanto Tages, menino com rosto de velho, que revelou aos homens a sabedoria da adivinhação etrusca feita em vísceras de animais. Era como seu avô dizia.

Talvez o poder da velha tivesse morrido com ela, mas dona Celeste achava que o sangue nos descendentes vinha enfraquecendo a cada geração e nela só restava algum resquício do antigo poder.

Os netos, um de 14 e outro de 11 anos, chutavam uma bola no gramado do quintal. Em algumas horas, a mãe deles passaria para pegá-los.

Nessa tarde perfeita, Celeste teve uma leve sensação de incômodo. Algo que foi crescendo, crescendo, até que resolveu passar um café e se distrair. Colocou água no fogo, preparou o coador sobre a garrafa térmica, pegou o pote de café e constatou: vazio. A sensação de incômodo aumentou repentinamente.

– Bruninho, venha cá! – chamou.

Pegou uma nota de 20, deu ao menino e pediu para buscar um pacote de café na mercearia que ficava na esquina. A sensação parecia pegá-la de jeito, como se tudo, de repente, incomodasse mais do que o normal. O menino saiu, deixando o irmão mais novo brincando sozinho. Dez minutos após sua saída e ele ainda não tinha retornado. Vinte minutos e nada, trinta, trinta e cinco... A demora a consumia. Mas eis que viu o garoto no portão, com a embalagem de café. Quando chegou para entregá-la à avó, ela notou seu ar de assustado e perguntou:

– Que houve, menino? Viu o diabo, por acaso?

– Não, vó – respondeu o garoto, na sua inocência. – É que o seu Arlindo da mercearia acabou de ser levado pro hospital. A dona Neusa disse que ele ficou muito mal do nada. Tavam indo levar ele, vó. Mas tá aí o café.

– Seu Arlindo... desta noite não passa – murmurou ela, como se prenunciasse um fim trágico para o dia que seguia. E o menino ouviu.

– Que isso que a senhora disse, vó?

– Nada, filho. Volta lá brincar com seu irmão.

O pressentimento a consumiu pelo resto da tarde. Ficou angustiada, não sabia o que fazer, ou como se livrar desse sentimento.

***

Seu avô por parte de mãe veio da Bulgária para viver no Brasil. Isso Celeste sabia por tê-lo conhecido e com ele convivido quando criança, numa fazenda à beira do rio Tibagi. Segundo o velho, a finada avó, que ela não chegou a conhecer, tinha sangue de bruxa, mas ele, embora um cristão fervoroso e avesso a tudo quanto não combinasse com sua crença, a amava como jamais amou outra pessoa na vida, nem mesmo os próprios filhos. Celeste sempre pensava a respeito de sua ancestral. Sentia alguma coisa de magia correr em seu sangue. E todas as histórias que ouvira do velho, quando menina, apenas fortaleciam suas suspeitas.

A única certeza que tinha era que seu sangue era búlgaro, mas o avô sempre dizia que a velha bruxa, sua esposa, a quem todos chamavam de "vidente", jurou a vida inteira que tinha alguma descendência, e muito forte, dos povos da antiga Etrúria, e que tinha plena convicção de toda sua família ter vivido, e ainda viver, num vilarejo na região da toscana, onde, em tempos idos, habitaram os etruscos com seus encantamentos e saberes ocultos. Isso era o que garantia a velha bruxa ao marido, avô de Celeste.

Celeste era uma mulher de conhecimento, era inteligente. Católica, porém supersticiosa, e conhecedora de histórias e do mundo. Quando moça, levou a sério sua educação, sempre guardando na memória tudo que ouvia e achava interessante. Sabia matemática, história antiga, sabia escrever perfeitamente. Coisas que a maioria das meninas pobres de sua época não teve a chance de aprender, bem sabia. Aprendeu também uma infinidade de costumes e crenças populares, com os mais velhos, como prever chegada de chuva, ou simpatias para espantar visita, além de outras "habilidades" com benzedeiras e pessoas supersticiosas.

Em toda sua vida, trabalhou, e sempre quis, mesmo que não precisasse. Tinha um negócio de vender tecido e aviamentos com o marido, um senhor dado a poucos momentos de bom humor com o restante do mundo, mas sempre dedicado e cuidadoso com ela e as filhas. Depois que ficou viúva, vendeu a loja e se aposentou, ficando a maior parte do dia com os netos. Sempre se imaginava pensando no que seu avô diria sobre os filhos e netos dela: "Têm o sangue da velha bruxa, mas são boas crianças". O velho avô tolerava e respeitava só a vidente, sua esposa, pois ninguém mais que nasceu depois teve o mesmo respeito e carinho que ela, pois todos tinham "sangue de bruxa" para aquele católico ortodoxo, depois convertido ao catolicismo romano, já vivendo no Brasil. "Uma forma bastante contraditória de pensar seu próprio contexto", imaginava dona Celeste sobre o avô. Até mesmo ela o velho tratava com ressalvas. Ela, que tinha sangue de bruxa, sangue etrusco. Seria mesmo? Celeste sentia alguma força em si, algo que não era fácil de explicar, como uma sensitiva. Muitos chamariam de faro, sexto sentido, sorte. A verdade é que ela quase sempre acertava previsões.

***

"Ontem vi uma cobra", pensou, "outros dias também vi o que vi, joguei no bicho e deu certo. Preciso acreditar mais em mim".

A tarde seguia quente. A palpitação no peito de Celeste cessou. Entrou, depois do neto voltar a brincar de bola com o irmão. Nesse momento, ela sentiu um calafrio percorrer todo seu corpo. "Seu Arlindo", pensava ela, e voltou ao café. Abriu o pacote, deitou três colheres sobre o filtro e, como a água já havia levantado fervura, despejou-a sobre o pó marrom, espalhando aquele maravilhoso aroma no ar. Assim que ficou pronto, pegou uma xícara e encheu-a para tomar, em seguida, pegou outra e encheu-a na altura de um dedo, acendeu um fósforo e enfiou sua cabeça ainda acesa no café. Um leve som de chiado e a chama se apagou, formando uma figura estranha na superfície preta. Entre outros métodos de ver coisas, esse era o que dona Celeste mais confiava.

– Parece uma cabra – falou consigo mesma. – vou jogar na cabra. Os outros dias também acertei, preciso jogar mais no bicho. Quem sabe eu não ganho algo?

Olhou para o troco que o neto devolvera, determinada a apostar na figura revelada pela xícara de café. A cabra representava, além de prosperidade e fertilidade, sob a ótica de certas culturas e da crendice popular da adivinhação, um amigo com problemas. Era também uma das cabeças da mortífera Quimera, dona Celeste sabia.

Logo o caso do seu vizinho, o seu Arlindo, voltou ao pensamento junto com a frase dita diante do neto. Ali, de pé, em frente à pia da cozinha, dona Celeste acabava de realizar uma antiga forma de adivinhação bastante difundida em lugares onde se consumia café. O que mais a surpreendeu, porém, foi a facilidade com que, momentos antes, pronunciara a sentença de um homem, diante do neto, como se estivesse num transe curto. Foi o suficiente para revelar à mulher com sangue de bruxa o mecanismo de funcionamento do seu universo em particular. Talvez uma forma bastante eficiente de pensar seu próprio contexto. Celeste deixou cair uma lágrima. Não sabia explicar o porquê, se era pela morte do vizinho, se era por uma secreta satisfação de ver concretizada uma adivinhação, ou se era o sentimento de falta, de nunca ter a oportunidade de conversar com a avó búlgara e talvez saber mais sobre a vida, mas as lágrimas vieram.

Sua avó teria sentido orgulho.

LUCIANO SILVA é escritor em Londrina.


Caro Sr. Luciano. Não sei quantos anos tem a Sra. Celeste mas, com esse dom, ela me faz crer que demorou um tanto para acreditar em si mesma. Conte-nos mais as histórias de Celeste. Estamos curiosos.

E, você que leu até aqui e lembrou do seriado Além da imaginação. Saiba que eu também!!. Mas as histórias não acabaram, volte amanhã para se surpreender.