Conversar sobre a velhice e o frio, como fizemos ontem, me comove de um jeito terno e positivo mas, também, me entristece. Acordei, nesta quarta-feira cinza e chuvosa, como quem pensa de um futuro próximo numa vida toda que poderia ter sido e não foi como diria Manoel Bandeira.

(Vocês repararam que eu dei um tempo das referências sertanejas?)

Pois assim nesse estado de espírito quase saudoso, quase nostálgico, decidi que vamos ler histórias que de certa forma falam de sonhos e perspectivas. Positivas é claro! Que amanhã é sexta-feira!

E, simbora para a leitura antes que eu comece a citar o Molejão, aqui, para ver se o Anderson dá uma palhinha no meu próximo Dubsmash.

Abraços,

Patrícia Maria


CONTRA MOINHOS E UMBUZEIROS



O dito cenário já se encontrava todinho em pé. O burburinho que se espalhava pela vila era de que o circo chegaria em breve. Os mais velhos diziam que pras bandas de cá circo algum jamais tinha vindo. Minha mãe e minha madrinha ao menos nunca viram. Um acontecimento e tanto. Quando já beirava o meio-dia, um grupo de moças e rapazes chegou numa caminhonete que, em frente à mercearia do Chico, pôs-se a anunciar a novidade aos quatro ventos.

Que circo que nada! Era um negócio de trupe não sei do quê. Gritavam que lá pelas cinco o povo dali tinha de estar reunido no miolo da vila, onde um sujeito de nome Dom Quixote daria o ar de sua graça. Perto das cinco, o vento soprava forte, fazendo da poeira um reboliço só. Chuva na certa.

A multidão ia se ajeitando em torno do espaço tomado por tralhas: Roupas engraçadas, cavalos de madeira, amontoados de livros e até um lençol pendurado entre os ipês, com um esquisito moinho estampado. Não tardou muito, e começou a encenação. O moço alto e magricela deu início ao falatório. O rosto estreito quase não era notado por detrás do bigode alongado. Folheava livros e proseava sozinho. Era ele Dom Quixote. Mais adiante entraram também Dulcinéia e um nanico de rosto redondo e avermelhado, feito pimentão, o escudeiro Sancho Pança. Não entendi muita coisa depois disso...

Dona Cidinha que tinha por hábito não fechar a matraca por nada, sem arredar pé, permaneceu cravada ao meu lado. Se eu por bem inventasse de sair, perderia meu lugar, bem lá na frente. Permaneci. A turma da trupe, no entremeio de uma cena à outra, resolveu, de bom grado, dar uma trégua pro pessoal todo se refrescar. O calor e a secura eram dos infernos, apesar do pé d’água que devagarzinho se achegava.

Dom Quixote retornou à folia montado num dos cavalos de madeira, de capacete prateado e trajado com um amontoado de roupas velhas, pelo visto muito quentes. Ligeiro meteu-se a golpear, com uma vareta comprida, o lençol hasteado pelas pontas. Dava reviravoltas e voltava a espetar o graúdo moinho nele desenhado. Aos berros, cantava que a labuta era contra dragões, os maiores até então já vistos.

Foi aí que lembrei do pai...

O mexerico que se debandava por todos os cantos, desde sua morte, era de que o pobre, numa noite de tormenta, saiu como louco maldizendo e atirando pedras e paus nos pés de umbuzeiro na curva da estrada. Tinha encucado que os galhos secos das árvores traziam sofrimento à gente daqui. Quem me contou foi o Chico. O pai não deixava aquela pocilga nem em caso de doença. O Chico dizia que ele tinha perdido era o juízo, que perambulava pra cima e pra baixo, feito cão sem dono, empurrando a bicicleta judiada.

A mãe me fez acreditar que ele morreu de morte morrida, de repente. Já minha madrinha me assegura que foi da cachaça. Eu era pequena de tudo, não entendia de nada. Meu nome quem escolheu foi ele. Célia. Cé-lia. Gosto do meu nome. Começaram a tombar os primeiros pingos sobre a terra dura. Dulcinéia, Sancho Pança e o cavaleiro continuavam com o enredo. A essas alturas eu já não tinha mais ideia de coisa nenhuma. Fiquei ali, estacada, lembrando do pai. Ele, que já foi também esse tal Dom Quixote.

LEANDRO GRZELAK é estudante em Londrina

Que dia era? Quantos anos tinha a Célia? Há quanto tempo seu pai tinha morrido? Queremos a segunda parte da história na qual a Célia se casa com o Dom Quixote e foge com o 'não' circo. *** Dom Quixote é um dos meus livros favoritos, Leandro.

O BEBÊ PELUDO



A expectativa naquela família era enorme, afinal seria o primeiro filho do casal e, também, o primeiro neto dos futuros avós. De parto normal, como aliás era comum naquele lugarejo. Não demorou e se ouviu o vagido forte da criança, vindo do quarto. Estranhou o Sr. Tonho, o avô, que do outro lado, com o ouvido colado à parede ouvia somente o choro da criança que chegava ao mundo e nada mais, nem um pio.

Sem cerimônia, entrou no cômodo, correu até a cama e viu, sobre o lençol, ao lado de sua filha, que ainda arfava exausta pelo esforço do parto, o pequeno rebento que chorava e apavorava os ali presentes. Tonho tentou dissimular o espanto, para não piorar, ainda mais, a perplexidade da nova mãe que suplicava explicações ao pai. "O que é isso!", exclamou por fim.

Passado o primeiro impacto, olhou mais detidamente para o recém chegado e pensou, com uma pontinha de humor, "Se não fosse filho de gente, até poderia dizer que é bonitinho, lembra muito os tais ursinhos pandas", pigarreou e disse: - Filha você acabou de ter uma linda criança – e percebendo que ela parecia não entender e muito menos acreditar no que ele falava, continuou, dando mais entonação à voz, para convencer os outros que permaneciam lívidos. - Você deve se sentir a mãe mais orgulhosa do mundo pois é a primeira, na nossa Era, a parir uma nova raça de gente aqui na Terra. Sem dar chances para questionamentos, empolgado, prosseguiu o avô, vaidoso de ser o centro das atenções.

- Com a evolução, o ser humano conforme foi passando o tempo foi sofrendo mudanças, transformações e extinguindo tudo o que não era mais necessário. Inclusive, até em nosso próprio corpo. E, olhando para a D. Jucélia, a parteira, que igual aos demais, parecia não entender onde ele queria chegar, perguntou: - D. Jucélia, a senhora sabe por que os seus dedinhos dos pés são tão pequenos e não tão ágeis como os demais? E, mesmo antes que ela começasse a pensar, ele mesmo foi respondendo – Porque não são utilizados como os outros dedos e vai chegar um tempo que irão desaparecer por completo. Muito diferente dos macacos que os tem ágeis, assim como os rabos deles que ajudam a segurar nos galhos da árvores. Nesse momento o Sr. Tonho pensou, mas não disse nada: "Será que a gente também teve rabo? E riu da imagem que criara em sua própria mente.

- Mas como eu disse – prosseguiu o avô, vendo que o assunto, na introdução de seu discurso, havia causado algum interesse - a natureza é uma mãe e como tal quer cuidar de nós. – Pai, interrompeu a filha que até então parecia não estar entendendo nada. – Calma que eu explico filha - cortando-a novamente e continuou com o que agora mais parecia uma palestra sobre antropologia. - Ninguém duvida, e as explorações estão ai para comprovar, que nós, muito antigamente, tínhamos o corpo todo coberto por pelos – nesse instante, como que obedecendo a uma coreografia, todos direcionaram suas olhares para a criança peluda deitada ao lado da filha do Sr. Tonho. – Nós não usávamos roupas, vivíamos nas matas e florestas e necessitávamos dos pelos para nossa proteção nas mudança de clima, picada de insetos e até para nos camuflarmos dos predadores. E, digo mais, como a natureza é sábia, assim como ela tirou de nós os pelos porque não precisávamos mais deles - já que começamos a usar roupas para viver na civilização - Agora, sabendo que o homem não consegue mais controlar os insetos e estamos sofrendo muitos males - vide a dengue e xicunha - não duvidem que em breve, as crianças tudo, além dos pelos, como é o caso do meu neto aqui, vão nascer com rabo para poder espantar os aejipse - concluiu satisfeito.

Então imaginou as pessoas, a exemplo dos cães, abanando seus rabos para demonstrar sentimentos e tornou a rir por dentro. E, vendo que a filha, mais calma e amorosa, afagava seu bebê peludinho, esticou o olhar, disfarçadamente, para ver se o pequeno, quem sabe, já não tinha vindo com rabo.


JOSÉ ROBERTO BRUNASSI é leitor da Folha de Londrina.


Sr. Tonho tem toda a lógica. E, que pequeno caos seria ver o sentimento de toda a gente como nos rabos dos cães, hein José?!
Já sabe, escreva! Libera essa criatividade que lhe pertence! E-mail? [email protected]. Aguardo!