Um dia parei no meio do dia e pensei que já havia vivido alguns dias iguais àquele. Acordei no mesmo horário, escovei meus dentes e cabelos, lavei meus olhos, deixei de enxergar por um tempo porque a água entrou onde não devia, foquei minha vista no espelho, vi meu reflexo e perguntei: "Que dia é hoje? Terça-feira? Quarta? Quinta? 10 ou 11?"

Hoje não.

Vamos aos textos.

Abraços,

Patrícia Maria


PRISÕES E DISFARCES

É tão agradável se enfiar na cama com os lençóis recém trocados! Também é uma delícia se enxugar com uma toalha limpa e perfumada, ou vestir uma roupa nova, calcar um sapato que acabou de sair da caixa...

Quando somos tocados fisicamente por algo novo, limpo, cheiroso, virgem, nos invade aquela sensação de inexplicável alegria, de leveza e libertação. Parece que algo novo começa, que temos uma outra oportunidade, que adquirimos um novo tipo de força, de vontade e de fé em nós mesmos. Não é só querer ter algo, mas o que isto pode significar.

Um novo corte de cabelo, uma mudança em nosso estilo, um móvel novo na casa, uns lábios pintados são capazes de transformar-nos intima e radicalmente, por mais fúteis que estes acontecimentos possam aparecer. Às vezes, por trás deles se escondem experiências que nos marcaram e que vêm à tona e são até exorcizadas por estas pequenas mudanças, por estas coisas novas, limpas, perfumadas.

Sempre digo que grande parte de quem somos se reflete fielmente em nosso cenário, nossos rituais, roupas, alimentos e opções de cada dia, por isso, às vezes, conseguir mudá-las pode ser realmente libertador, pois podem ter se transformado em prisões ou disfarces que destroem as nossas chances de sermos felizes e nos realizar.

Paz Aldunate é escritora em Santiago do Chile.


Paz, certa vez eu estava na piscina e o professor me entregou as palmatórias e os pés de patos, pediu que eu os calçasse e obedeci de pronto, como todas as vezes, feliz que ia nadar com a fluência de uma sereia. Então, ele me estendeu um cinto, com dois fios estendidos e mini paraquedas em ambas as pontas, não saí do lugar. Talvez, só às vezes, mudar nossa rotina pode destruir nossas chances de felicidade e realização. ⊙‿⊙

A LONDRISSÉIA

"E a noite avança. A guerra começou. E estamos aqui, a cidade está lá, toda envolta em sua própria capa de mil cores. O que acha, Montag?" (Ray Bradbury - Fahrenheit 451)


Canta-me, ó Musa, as proezas de Aquiles, filho de Peleu.
Não...

Canta-me, ó Musa, do astuto Odisseu, o retorno à casa.
Não...

Melhor começar na humildade, já que tudo se resume a fatos bem menos heroicos e um tanto mais corriqueiros. Nada de grandes feitos, nem de valentes aventureiros escrevendo seus nomes na História.

Era um dia comum, daqueles de inverno típico na cidade da terra vermelha, cidade de mil cores, onde fazia mais calor do que num autêntico dia de verão. Era um desses dias em que você sai em companhia de pessoas caríssimas ao seu convívio, como mamãe e vovó, para resolver pendências geradas pela tecnocracia de instituições financeiras cuja única razão de existir é fazer jus à vampiresca capacidade de sugar teus bens, valores e paciência. E, embora não tenha faltado empenho da gentil atendente com nossos entreveros, a empreitada demorou. Foi então que partimos em uma não tão curta jornada de aventuras e obstáculos, ao findar a batalha na Grande Tróia Bancária. Uma jornada para casa. Ai de mim! Pois mesmo sem desafiar a fúria de Poseidon ou devorar as vacas de Hipérion, senti as forças do destino a me estrangular e me afastar cada vez mais de meu intento.

Melody of Passion - Leonid Afremov
Melody of Passion - Leonid Afremov



Assim que rumamos à nau, mais conhecida como automóvel, fomos abordados pelo primeiro grande obstáculo da nossa típica cidade: um flanelinha, espécie de ser cuja insistência é capaz de perfurar a mais obstinada armadura mental, romper a defesa do mais insistente escudo de "nãos". Ele talvez tivesse uma odisseia diferente a contar. Pouco me importava, pois cada um é senhor da própria existência fatídica e, no momento, a mim cabia apenas a minha.

Após perder a primeira batalha, cedendo aos anseios financeiros do flanelinha, adentramos nossa bojuda nau e partimos pelo grande mar de asfalto. Avistei um ônibus, uma grande criatura metálica repleta de pessoas dentro, digna das mais monstruosas feras do Tártaro, e percebi que ele vinha em minha direção. Qual não foi minha surpresa ao ver que ele avançava quase como se quisesse fazer o papel de rolo compressor de automóveis, praticamente se jogando sobre nosso carro, numa pressa interminável em despejar suas vítimas em lugares específicos. Graças aos deuses do Olimpo, fomos salvos pela duvidosa habilidade automobilística deste que vos narra.

O próximo antagonista homérico a nos cercar foi o caminhão de transporte de valores, com suas bestiais válvulas à guisa de bafo de dragão, expelindo colossais camadas de carbono tóxico para dentro de nosso veículo. Decerto queria nos sufocar até a morte. Era uma espécie de ataque em dupla, pois curiosamente um veículo a 20 por hora me bloqueava a passagem, fazendo com que o caminhão baforasse incessantemente em nossa direção. Por pouco não fomos asfixiados.

Para coroar o infortúnio da jornada, harpias voando em motocicletas investiam a todo momento contra a nau motorizada, em busca de espaço e lutando para se imporem na mesma rota do oceano asfáltico que eu seguia.

Após muita luta e climas tormentosos, logrei êxito em desembarcar minhas companheiras de jornada, mamãe e vovó, e parti rumo ao meu lar.

Qual não foi minha surpresa ao chegar no prédio e deparar com um elevador em manutenção. Ali estava meu último desafio, o último obstáculo antes de chegar ao meu querido lar. Precisei, exausto, encarar lances e mais lances da monstruosa criatura mitológica conhecida como Escadaria, para finalmente encontrar as praias do meu lar.

Embora não tenha sofrido a perda de tantos companheiros, como o astuto Odisseu precisou sofrer, penso que, por mais corriqueiro que o dia tenha sido, imagino que nem ele lutou tanto em seu mítico retorno ao lar.

Luciano Silva é escritor em Londrina


Luciano, imagine se estivesse chovendo! ◔‿◔



Escrevam e escrevam, quem sabe eu gosto?